Big techs e o cuidado

por | jun 18, 2025 | Notícias

“Não existe, em lugar algum do mundo, a possibilidade de violar a honra de uma determinada pessoa e não ser responsabilizado por esta violação. E, caso exista é porque o Dasein, nesses lugares, tomou o caminho da decadência e da ruína”.

 

Por Márcia Aparecida de Freitas no Migalhas

O cuidado adquiriu status de dever jurídico, tanto que o art. 227 da Constituição Federal dispõe expressamente:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à cultura, à dignidade, ao respeito, á liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O dever de cuidado penetra todos os quadrantes do universo jurídico (civil, penal, empresarial, trabalhista etc.) e estabelece obrigações para todas as pessoas físicas ou jurídicas que atuam em território nacional, inclusive entes despersonalizados, como é o caso do condomínio edilício. Essas obrigações têm a finalidade de prevenir a ocorrência de danos à vida, à moral, à integridade física e ao patrimônio das pessoas. Aliás, independentemente da sanção penal, a violação de quaisquer desses direitos implica sanção civil, conforme prescreve o Art. 5.º, itens V e X da Constituição Federal:

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem.

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Enfim, no contexto jurídico, o dever de cuidado refere-se à obrigação de tomar medidas para evitar danos à vida, à honra e ao patrimônio das pessoas. Nota-se que no Direito brasileiro este dever é inexorável, portanto, implacável e inflexível. Nessa linha cabe destacar o dever dos pais de cuidar dos filhos e vice-versa; o dever do empresário de cuidar da segurança dos trabalhadores; o dever dos fornecedores em relação aos consumidores. Todos esses deveres estão previstos na Constituição Federal e nas leis que os regulamentou: CC, CDC, CLT, Estatuto da Criança e do Adolescente etc.

Heidegger (§ 2º) diz que o Dasein (ser-o-aí) é um ente que se entende a partir de sua existência, portanto, a existência determina o Dasein.

Na concepção heideggeriana a existência humana (Dasein) implica uma abertura que possibilita o manifestar-se do ser dos entes ou o desvelamento do sentido do ser de todos os entes. Sentido é, pois, o que pode articular-se na abertura da compreensão. A abertura possibilita que venha à luz e se torne visível algo que estava oculto, esquecido, encoberto. É na abertura que as coisas adquirem sentido.

Assim, é com referência à existência e à cotidianidade do Dasein que o ser desse ente surge. Segue-se que, para compreender o ser dos demais entes (coisas: objetos, utensílios), é preciso, em primeiro lugar, compreender o modo de ser desse ente que denominamos Dasein.

Pertence ao modo de ser do Dasein: a existência, a abertura, a compreensão e o cuidado. O Dasein, portanto, está no mundo (ser-no-mundo) como existência, compreensão e cuidado. O cuidado é definido como o ser do Dasein porque o Dasein tem nele o horizonte de seu sentido, daí a importância que Heidegger dedica a este conceito. Cuidado, na cotidianidade, é ocupação e preocupação.

Como dito, o ser do Dasein se manifesta no contexto do mundo como cuidado: ocupação (ser em) e preocupação (ser com). O cuidado compreende todas as possibilidades da existência que estejam vinculadas às coisas (ser em) e às pessoas (ser com). O cuidado é, pois, a manifestação fundamental da existência do homem no mundo, uma característica essencial do Dasein, que consiste propriamente em ocupar-se com as coisas e cuidar das pessoas (HEIDEGGER, Martin; § 41º).

O cuidado é um modo de ocupação que maneja e que emprega um objeto como um instrumento. É no ocupar-se que o instrumento pode mostrar-se em seu ser, por exemplo: o martelar com o martelo. Quanto mais o martelo é utilizado, menos encoberto será como instrumento. Um instrumento nunca é isolado, refere-se sempre a outros instrumentos e o conjunto dessa referência constitui o nosso modo de ser no mundo. Todavia, é a partir da ocupação que aparece a preocupação com os outros.

O Dasein não só se ocupa do mundo dos objetos, mas também se preocupa com os outros. O cuidado, portanto, se dá também como preocupação. Preocupação, conforme Heidegger (§ 28), não é um relacionamento isolado do eu comigo mesmo, é estar com outras pessoas que comparecem no mundo. O Dasein não está sozinho no mundo, Dasein é ser-com, portanto não pode ser compreendido isoladamente. Enfim, preocupação é uma espécie de relação intersubjetiva (sujeito-sujeito).

Em síntese, ser-no-mundo é abertura, é lidar com as coisas e manter um relacionamento com elas enquanto utensílios ou relacionar-se com os outros como pessoas, em um modo de ser-com, de compartilhar e de zelar. É no mundo da ocupação e da preocupação que o Dasein cuida das coisas e dos outros seres humanos.

Cuidado não é apenas manusear instrumentos, é, principalmente, amparar e proteger pessoas, é um modo de ser no mundo, ou seja, é a forma como a pessoa humana se estrutura e se realiza no convívio com os outros. O Dasein, como ser-no-mundo, existe em estado de constante preocupação.

Nesta trilha, o cuidado implica a construção de um mundo melhor. Mas, cuidado não se confunde com caridade. Cuidado é preocupação e responsabilidade em relação ao bem-estar de outros, reconhecendo suas necessidades e garantindo apoio, assistência e proteção. É alteridade (colocar-se no lugar do outro) que implica reconhecimento e respeito pela individualidade e diferença dos outros.

Portanto, quer no nosso sistema legal, quer na perspectiva de Martin Heidegger, temos que é incompreensível a posição de empresas que dominam o mercado tecnológico, as multinacionais, denominadas “Big Techs”, especialmente as plataformas de redes sociais, que teimam em afrontar a lei brasileira ao se posicionarem contra o dever de cuidado que consiste em prevenir práticas ilícitas em suas plataformas, tais como: a disseminação de conteúdos ilegais e criminosos, notadamente aqueles direcionados às crianças e adolescentes, incentivando-os à prática de mutilações, expondo-os à pedofilia, além de uma avalanche de mentiras (Fake News) sobre quase todos os assuntos de interesse vital para a comunidade. São milhões de conteúdos que efetivamente causam danos irreparáveis para suas vítimas.

Ora, se até o condomínio tem o dever de cuidado em relação aos moradores, por qual razão as Big Techs entendem que estão isentas desse dever? É que as Big Techs querem apenas direitos (os bilhões com a venda de seus produtos) sem os correspondentes deveres, estes assentados de modo inequívoco na Constituição Federal. Em suma, as empresas de tecnologia, as Big Techs não querem responder pela indenização aos danos materiais ou morais decorrentes do uso de suas plataformas.

É preciso ter claro que o cuidado não se limita apenas ao âmbito jurídico, este delimitado pelas fronteiras do Estado Nacional. O cuidado vai além, ele se expande para o âmbito ético e moral, pois se refere a uma estrutura fundamental da existência humana, portanto, ultrapassa as fronteiras territoriais. Isto significa que o cuidado, ainda que implicitamente, está na base de todos os ordenamentos jurídicos estatais e, como tal, se constitui como principio elementar e fundamental dos sistemas jurídicos.

Isso significa que não existe, em lugar algum do mundo, a possibilidade de violar a honra de uma determinada pessoa e não ser responsabilizado por esta violação. E, caso exista é porque o Dasein, nesses lugares, tomou o caminho da decadência e da ruína.

Heidegger diz que o Dasein tem a propensão para decair e perder-se naquilo de que se ocupa!

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Constituição Federal de 1988.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis. Editora Unicamp e Editora Vozes. (2012)

Márcia Aparecida de Freitas é mestra em Direito no Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Advogada. Presidenta do Instituto dos Advogados da Zona Leste de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos Avançados GEA – IAZL.

 

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