Por Raphaella Reis de Oliveira*

É tempo de rever nossas relações enquanto operadores do Direito, e chamar a advocacia paulista a uma profunda reflexão. O período de enfrentamento ao COVID-19 tem mostrado que o modelo corporativo não é apenas contrário à produtividade e nocivo à saúde mental, como pode ser fatal para muitos trabalhadores.

Enquanto somos indispensáveis para administração da Justiça, o trabalho – nosso trabalho – é fundamental para que todos nós possamos desenvolver plenamente nossas prerrogativas constitucionais. E é mais importante que eu, você, que todos nós. Por isso, precisamos nos adaptar. Precisamos repensar os modelos de trabalho que temos.
Precisamos avaliar que Justiça é essa, para a qual somos indispensáveis, quando temos tão pouco apreço pelo Trabalho quando aplicado a nós.

A advocacia precisa exercer seu papel constitucional sem negar sua condição humana; o dever de lutar pela Justiça não pode – e não deve – prevalecer sobre o direito de estar vivo, em segurança, com saúde, em pleno uso e gozo de suas prerrogativas constitucionais que possibilitam a concretização
deste papel constitucional que temos.

Aqui, a disparidade entre os anseios da jovem advocacia e a atuação das instituições mostra sua
face. Bem sabemos que as portas do mundo jurídico só estão abertas para os chamados “dignos”; e essa
dignidade está diretamente relacionada ao seu CEP, ao seu tom de pele, às origens da sua família, ao
tipo de banheiro que você usa, e a quem você ama.

A advocacia acaba engessada, ao incorporar em suas estruturas valores pouco republicanos para seu exercício, e não cumpre o papel que lhe é constitucionalmente outorgado. E as instituições não estão preparadas para defender, propriamente, o papel constitucional daqueles que representam, sem negar a condição humana que possuem, ou reconhecer as estruturas que os excluem.
O cenário caótico de prevenção ao COVID-19, onde a advocacia, precarizada e vulnerável, se vê forçada a colocar a vida em risco todos os dias para manter uma renda mínima – e por vezes desvinculada do papel constitucional que deveria exercer – sem defesa apropriada das instituições competentes, é mais um exemplo disso.

Incontáveis são as situações nas quais a advocacia se viu despida de suas prerrogativas profissionais e constitucionais, por força das estruturas discriminatórias que formam e informam nossa sociedade e o mercado jurídico, sem uma resposta institucional adequada.

O horror se tornou um triste padrão no mundo jurídico; o período que vivemos é, infelizmente, mais uma das muitas situações kafkianas vividas pela advocacia, sobretudo a jovem advocacia, que egressa do cenário acadêmico e se vê subjugada por um Leviatã corporativo que valoriza não o saber jurídico, mas o emaranhado de sutilezas discriminatórias, e troca a qualidade do serviço jurídico por quantidade de palavras digitadas em peças jurídicas pelo menor preço, sem questionar – ou ponderar– o custo disso em nossa sociedade.
Mas há esperança. Há, ainda, instituições conectadas à realidade da advocacia, e atuando para consolidar as instituições democráticas e a cidadania no Brasil, lembrando sempre a condição humana dos atores institucionais envolvidos. Há quem ainda compreenda a magnitude de sua missão. E destes, não devemos desistir.

A preocupação especial com a jovem advocacia, a quem o modelo corporativo é imposto como o único meio possível de sobrevida, tem sido dirimida pela atividade sindical, que tem demonstrado aos
empregadores e empregados jurídicos que outros caminhos podem e devem ser trilhados.

A pandemia é um divisor de águas nas relações de trabalho no Brasil. E sinaliza a necessidade de repensarmos as relações desenvolvidas no mundo jurídico, e as estruturas da atuação institucional, para que possamos cumprir o dever de defender a Constituição, o Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.
Em uma sociedade que apresenta as mais abissais desigualdades sociais, cuja mitigação só é minimamente possível por meio do exercício da Advocacia, a justiça social só será alcançada com uma análise crítica das condutas que modelam o mercado jurídico.

Porque a história da advocacia é a nossa história. A vida da advocacia é a nossa vida. Precisamos nos repensar, reconectar e resgatar nossas prioridades, para que possamos trilhar novos caminhos e construir um novo tempo, sem perder de vista o papel constitucional que todos temos.

*Raphaella Reis de Oliveira é Advogada. Especialização em Compliance Regulatório pela Penn State University (em curso). Vice-presidente da Comissão de Graduação, Pós-Graduação e Pesquisa da OAB-SP. Membro da Secretaria Executiva da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP. Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP. Atuante em outras Comissões da Seccional. Conselheira Representante do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo – SASP. Vice-presidente da Comissão da Jovem Advocacia do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo – AJA com SASP. Membro da Rede Femijuris. Membro da Rede Feminista de Juristas – DeFEMde. Coordenadora Regional do Movimento da Advocacia Trabalhista Independente – MATI.