1 – Contexto Atual: Ação Penal 470
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal e seus respeitáveis ministros se submeteram a um espetáculo jamais visto: em pleno ano eleitoral, o julgamento de uma única ação, a Ação Penal 470, ganhou todos os holofotes da imprensa e foi acompanhado em tempo real pela maioria das emissoras de rádio e televisão, sendo objeto de comentários, encartes e matérias especiais também na mídia escrita.
Tudo isso foi resultado de anos de uma pressão frenética e de um pré-julgamento político condenatório dos réus da referida ação penal, provocados por alguns setores conservadores, inclusive da mídia, contrários ao Partido dos Trabalhadores, cujo programa é de cunho socialista e que há dez anos vem sendo legitimamente eleito pelo povo para comandar o governo federal.
Tamanha foi a pressão que os setores da imprensa preferenciais da classe média fizeram sobre nossa Corte Suprema, que os ministros mais aguerridos em sua sanha condenatória foram instantaneamente transformados em heróis e capas de revista, enquanto que aqueles estritamente técnicos ou que votaram pela absolvição eram, se não ignorados, criticados como se estivessem sendo parciais ou coniventes com a suposta corrupção ocorrida.
A Ação Penal 470 também ganhou um apelido pejorativo da imprensa conservadora, baseado em denúncias irresponsáveis de um desafeto político, que sequer foram provadas no corpo da ação: a suposta existência de um pagamento de “Mensalão” (sic) para compra de votos de parlamentares da base aliada do governo.
A influência que a cobertura e a superexposição desse julgamento causaram em cada um dos ilustres ministros de nossa Suprema Corte não pode ser medida em termos subjetivos, porém, em termos objetivos, a condenação da maioria dos réus da Ação Penal 470 reveste-se, além de inconstitucionalidades, também de alterações na jurisprudência consolidada anterior.
Terá sido esse um julgamento de exceção? Ou toda a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal será alterada a partir de então, para aplicar uma “Teoria do Domínio do Fato” distorcida, condenar com base em indícios e presunções, deixando a sociedade brasileira numa constante insegurança jurídica?
Só o tempo poderá nos dar uma resposta. Mas algumas inconstitucionalidades presentes no julgamento da Ação Penal 470 são gritantemente identificáveis, a começar pelo não desmembramento da ação para que os réus não detentores de prerrogativas de função pudessem ser julgados em primeira instância, o que acabou resultando na supressão dos seus direitos fundamentais do juiz natural e do duplo grau de jurisdição. É sobre esse aspecto que nos deteremos no presente artigo.
2 – Legislação e Jurisprudência Precedente Aplicável
Dentre as possibilidades de processamento e julgamento de ações diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, sem que haja uma instância inferior, existem alguns casos que a Constituição Federal designou à Suprema Corte pela qualidade das pessoas que estão sendo julgadas, conforme se verifica na redação do artigo 102, inciso I, alíneas “b”, “c” e “d” da Constituição Federal. São os casos de competência originária por prerrogativa de função:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
(…)
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;
d) o "habeas-corpus", sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o "habeas-data" contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal;
(…)”.
Os dispositivos constitucionais acima transcritos tratam da competência por prerrogativa de função, que se justificaria, nas palavras de Vicente Greco, da seguinte forma:
“Certas autoridades são julgadas diretamente pelos tribunais superiores e de segundo grau, suprimindo o primeiro grau. Essa supressão justifica-se em virtude da proteção especial que devem merecer certas funções públicas, cuja hierarquia corresponde, também, à hierarquia dos tribunais, daí a competência originária”. (GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 1º vol. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 46).
O Ministro Revisor da Ação Penal 470, Ricardo Lewandovsky, ao revisitar a Questão de Ordem no Inq 2.245/MG, utilizando-se da mesma citação acima transcrita, sobre ela ponderou, in verbis:
“Isso é assim porque o julgamento desses agentes públicos por juízos singulares ou por órgãos colegiados de instâncias inferiores, mais vulneráveis, teoricamente, a pressões populares, políticas ou midiáticas poderia resultar em decisões que, no limite, teriam o condão de comprometer a própria ordem democrática
(…)
Seja como for, trata-se de uma competência excepcional e, como tal, só pode ser admitida em situações igualmente excepcionais. Nessas hipóteses aplica-se o vetusto brocardo jurídico de acordo com o qual “excepciones sunt strictissimae interpretationis”, ou seja, “as exceções interpretam-se de modo estrito”. Em outras palavras, a competência por prerrogativa de função só pode ser reconhecida nos casos taxativamente enumerados na Constituição, cujo rol não permite exegese ampliativa”.
Do pouco que até aqui foi exposto, já se faz muito claro que a Constituição Federal é explícita e taxativa quanto às pessoas que serão julgadas originariamente pelo Supremo Tribunal Federal quando forem acusadas de infrações penais comuns ou crimes de responsabilidade, não sendo permitido que cidadãos não detentores dos mandatos ou cargos ali discriminados sejam submetidos à mesma regra.
Nesse sentido, a Súmula 451 do Supremo Tribunal Federal: “A competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional”.
Antes de publicar a supracitada Súmula 451, a Egrégia Suprema Corte havia publicado a Súmula nº 394, nos idos de 1964, anteriormente à Constituição de 1988, com o seguinte conteúdo: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. Esta súmula, porém, ao contrário da súmula 451, foi CANCELADA, pois o Egrégio Supremo Tribunal Federal entendeu que a tese nela consubstanciada não se refletiu na Constituição de 1988.
É o que se extrai da ementa abaixo transcrita, com grifos nossos:
“EMENTA: – DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. PROCESSO CRIMINAL CONTRA EX-DEPUTADO FEDERAL. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA. INEXISTÊNCIA DE FORO PRIVILEGIADO. COMPETÊNCIA DE JUÍZO DE 1º GRAU. NÃO MAIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CANCELAMENTO DA SÚMULA 394. 1. Interpretando ampliativamente normas da Constituição Federal de 1946 e das Leis nºs 1.079/50 e 3.528/59, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência, consolidada na Súmula 394, segunda a qual, "cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício". 2. A tese consubstanciada nessa Súmula não se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, "b", estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar "os membros do Congresso Nacional", nos crimes comuns. Continua a norma constitucional não contemplando os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado (art. 102, I, "b" e "c"). Em outras palavras, a Constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro às autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato. Dir-se-á que a tese da Súmula 394 permanece válida, pois, com ela, ao menos de forma indireta, também se protege o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi praticado e o acusado não mais o exerce. Não se pode negar a relevância dessa argumentação, que, por tantos anos, foi aceita pelo Tribunal. Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos. 3. Questão de Ordem suscitada pelo Relator, propondo cancelamento da Súmula 394 e o reconhecimento, no caso, da competência do Juízo de 1º grau para o processo e julgamento de ação penal contra ex-Deputado Federal. Acolhimento de ambas as propostas, por decisão unânime do Plenário. 4. Ressalva, também unânime, de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula 394, enquanto vigorou”. (Inq 687 QO, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 25/08/1999, DJ 09-11-2001 PP-00044 EMENT VOL-02051-02 PP-00217 RTJ VOL-00179-03 PP-00912)
Assim sendo, se a Constituição Federal não permite a ampliação da competência original do STF para o processo e julgamento de ex-detentor de prerrogativa de foro, fica mais óbvia ainda a inconstitucionalidade da ampliação dessa competência para os cidadãos comuns que nunca exerceram quaisquer das funções descritas no artigo 102, I, “b” e “c” da Constituição Federal.
No entanto, no caso da Ação Penal 470, a Constituição Federal e toda a construção jurisprudencial que vem evoluindo desde a sua promulgação foram ignoradas em favor de uma legislação infraconstitucional, mais especificamente os incisos I e III do artigo 76, o inciso I do artigo 77 e o artigo 80 do Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/41):
“Art. 76. A competência será determinada pela conexão:
I – se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
(…)
III – quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração”.
“Art. 77. A competência será determinada pela continência quando:
I – duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração;
(…)”
“Art. 80. Será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não Ihes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação”.
Em dezembro de 2006, os ilustres ministros do Supremo Tribunal Federal, ao deliberar sobre a questão de ordem suscitada para o desmembramento do Inquérito 2.245-4 MG, do qual decorreu a Ação Penal 470, tendo em vista que a maioria dos investigados não gozava de foro privilegiado (40 denunciados, apenas 6 com prerrogativa de foro à época), se limitaram a analisar apenas as infraconstitucionais normas de processo penal acima transcritas e sua aplicação ao caso concreto:
“EMENTA: QUESTÃO DE ORDEM. INQUÉRITO. DESMEMBRAMENTO. ARTIGO 80 DO CPP. CRITÉRIO SUBJETIVO AFASTADO. CRITÉRIO OBJETIVO. INADEQUAÇÃO AO CASO CONCRETO. MANUTENÇÃO INTEGRAL DO INQUÉRITO SOB JULGAMENTO DA CORTE. Rejeitada a proposta de adoção do critério subjetivo para o desmembramento do inquérito, nos termos do artigo 80 do CPP, resta o critério objetivo, que, por sua vez, é desprovido de utilidade no caso concreto, em face da complexidade do feito. Inquérito não desmembrado. Questão de ordem resolvida no sentido da permanência, sob a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, de todas as pessoas denunciadas. (Inq 2245 QO-QO, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 06/12/2006, DJe-139 DIVULG 08-11-2007 PUBLIC 09-11-2007 DJ 09-11-2007 PP-00043 EMENT VOL-02298-02 PP-01287 RTJ VOL-00203-01 PP-00034)”. (grifos nossos)
Em se tratando de uma Corte Constitucional, porém, era de se esperar que fosse debatida e analisada a impossibilidade de alargamento da competência originária do Supremo Tribunal Federal não apenas por razões de conveniência e oportunidade, mas, sobretudo, pela falta de preceito constitucional expresso e para não alargar, em consequência, a subtração do direito constitucional ao duplo grau de jurisdição.
O interessante é que mais ou menos na mesma época do julgamento da questão de ordem acima relatada, em que por razões práticas usurpou-se o direito ao duplo grau de jurisdição de mais de três dezenas de cidadãos em detrimento de seis detentores de foro privilegiado (que quando da propositura da Ação Penal 470 já estavam reduzidos a três), foi publicado o acórdão do julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.797-2/DF e 2.860-0/DF, que haviam sido propostas contra os §§1º e 2º do artigo 84 do Código de Processo Penal, incluídos pela Lei nº 10.628/2002.
A ementa desse acórdão demonstra que, in casu, ao contrário do ocorrido no inquérito que originou a Ação Penal 470, a prerrogativa de foro foi analisada sob o âmbito estritamente constitucional. Atente-se aos nossos grifos:
“EMENTA: I. ADIn: legitimidade ativa: "entidade de classe de âmbito nacional" (art. 103, IX, CF): Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP 1. Ao julgar, a ADIn 3153-AgR, 12.08.04, Pertence, Inf STF 356, o plenário do Supremo Tribunal abandonou o entendimento que excluía as entidades de classe de segundo grau – as chamadas "associações de associações" – do rol dos legitimados à ação direta. 2. De qualquer sorte, no novo estatuto da CONAMP – agora Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – a qualidade de "associados efetivos" ficou adstrita às pessoas físicas integrantes da categoria, – o que basta a satisfazer a jurisprudência restritiva-, ainda que o estatuto reserve às associações afiliadas papel relevante na gestão da entidade nacional. II. ADIn: pertinência temática. Presença da relação de pertinência temática entre a finalidade institucional das duas entidades requerentes e os dispositivos legais impugnados: as normas legais questionadas se refletem na distribuição vertical de competência funcional entre os órgãos do Poder Judiciário – e, em conseqüência, entre os do Ministério Público . III. Foro especial por prerrogativa de função: extensão, no tempo, ao momento posterior à cessação da investidura na função dele determinante. Súmula 394/STF (cancelamento pelo Supremo Tribunal Federal). Lei 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1º e 2º ao artigo 84 do C. Processo Penal: pretensão inadmissível de interpretação autêntica da Constituição por lei ordinária e usurpação da competência do Supremo Tribunal para interpretar a Constituição: inconstitucionalidade declarada. 1. O novo § 1º do art. 84 CPrPen constitui evidente reação legislativa ao cancelamento da Súmula 394 por decisão tomada pelo Supremo Tribunal no Inq 687-QO, 25.8.97, rel. o em. Ministro Sydney Sanches (RTJ 179/912), cujos fundamentos a lei nova contraria inequivocamente. 2. Tanto a Súmula 394, como a decisão do Supremo Tribunal, que a cancelou, derivaram de interpretação direta e exclusiva da Constituição Federal. 3. Não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior. 4. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal – guarda da Constituição -, às razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental: admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição – como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia -, só constituiria o correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames. 5. Inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 C.Pr.Penal, acrescido pela lei questionada e, por arrastamento, da regra final do § 2º do mesmo artigo, que manda estender a regra à ação de improbidade administrativa. IV. Ação de improbidade administrativa: extensão da competência especial por prerrogativa de função estabelecida para o processo penal condenatório contra o mesmo dignitário (§ 2º do art. 84 do C Pr Penal introduzido pela L. 10.628/2002): declaração, por lei, de competência originária não prevista na Constituição: inconstitucionalidade. 1. No plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação. 2. Essa exclusividade constitucional da fonte das competências dos tribunais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial em relação às dos Estados, detentores de toda a jurisdição residual. 3. Acresce que a competência originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da competência ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição, só a própria Constituição a pode excetuar. 4. Como mera explicitação de competências originárias implícitas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões já aventadas contra a pretensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional. 5. De outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art. 37, § 4º), à ação penal contra os mais altos dignitários da República, para o fim de estabelecer competência originária do Supremo Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal sempre estabeleceu nítida distinção entre as duas espécies. 6. Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal -salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X e 96, III -, reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a definição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária. V. Ação de improbidade administrativa e competência constitucional para o julgamento dos crimes de responsabilidade. 1. O eventual acolhimento da tese de que a competência constitucional para julgar os crimes de responsabilidade haveria de estender-se ao processo e julgamento da ação de improbidade, agitada na Rcl 2138, ora pendente de julgamento no Supremo Tribunal, não prejudica nem é prejudicada pela inconstitucionalidade do novo § 2º do art. 84 do C.Pr.Penal. 2. A competência originária dos tribunais para julgar crimes de responsabilidade é bem mais restrita que a de julgar autoridades por crimes comuns: afora o caso dos chefes do Poder Executivo – cujo impeachment é da competência dos órgãos políticos – a cogitada competência dos tribunais não alcançaria, sequer por integração analógica, os membros do Congresso Nacional e das outras casas legislativas, aos quais, segundo a Constituição, não se pode atribuir a prática de crimes de responsabilidade. 3. Por outro lado, ao contrário do que sucede com os crimes comuns, a regra é que cessa a imputabilidade por crimes de responsabilidade com o termo da investidura do dignitário acusado. (ADI 2797, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2005, DJ 19-12-2006 PP-00037 EMENT VOL-02261-02 PP-00250)
A despeito da clareza da excepcionalidade com que se negou o desmembramento da Ação Penal 470 e, com isso, negou-se também à maioria maciça dos réus o direito a ser processada em primeira e segunda instância com todos os recursos possíveis, alguns poderiam invocar como fundamento a Súmula nº 704 do Supremo Tribunal Federal, que contém a seguinte redação: “não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.
Ocorre que a Súmula nº 704 foi editada com base em quatro julgamentos precedentes: RE 170125, DJ 9/6/1995; HC 68846 DJ 16/6/1995, RTJ 157/563; HC 75841, DJ 6/2/1998; HC 74573 DJ 30/4/1998, todos eles relacionados à competência do Tribunal de Justiça para julgar ação penal em que figure juiz de direito como um dos acusados. Ou seja, referida súmula não trata dos casos de competência originária do Supremo Tribunal Federal.
Embora, em nosso entender, a atração por continência ou conexão do co-réu à competência originária do Tribunal de Justiça viole sim o direito à ampla defesa daquele que não detém prerrogativa de função, há que se convir que ainda assim o cidadão poderá recorrer a outra instância, à corte federal. A primeira instância lhe foi negada, mas a segunda e terceira permanecem ao seu alcance.
Nos casos de competência originária do Supremo Tribunal Federal, os julgamentos se dão em uma única instância, inexistindo uma instância superior de recurso. Ou seja, eventuais recursos cabíveis serão julgados pela mesma corte que já condenou o cidadão não detentor de prerrogativa de foro.
Se o Supremo Tribunal Federal entende que a supressão extraordinária dos postulados da igualdade e do juiz natural não se aplica nem mesmo àqueles que já ocuparam e não mais ocupam os cargos públicos listados no artigo 102 da Constituição Federal, não há sentido algum em se aceitar tal restrição àqueles que nunca exerceram tais funções, simplesmente para atender fins práticos de continência ou conexão. A economia processual não pode ser justificativa para se restringir direitos constitucionais, garantias e princípios fundamentais.
3 – Algumas conclusões
Em sintética análise da legislação e jurisprudência aplicáveis à competência originária do Supremo Tribunal Federal, defendemos até aqui que a Constituição Federal é explícita e taxativa quanto àqueles que em tese devem ser julgados diretamente pela última instância, principalmente porque disso resulta a supressão de direitos e garantias fundamentais, como o juiz natural, ampla defesa e duplo grau de jurisdição, estes em hipótese alguma suplantáveis por razões de conveniência ou praticidade processual.
O Egrégio Supremo Tribunal Federal assim vinha decidindo de forma majoritária desde o cancelamento da Súmula 394, poucos anos após a promulgação da Constituição de 1988. No entanto, ao julgar o caso do que a imprensa conservadora apelidou de “Mensalão”, houve um corte nesse entendimento e, por razão de conveniência e oportunidade, trinta e cinco réus tiveram suprimidos seus direitos à primeira e segunda instância, quando apenas três gozavam da prerrogativa de foro no julgamento da Ação Penal 470.
A impressão de que o julgamento da Ação Penal 470 não alterará a jurisprudência consolidada, tendo se tratado de um caso excepcional, fica mais forte à medida em que localizamos recente decisão monocrática, publicada em 08/03/2013, portanto posteriormente ao julgamento da Ação Penal 470, em que foi determinado o desmembramento da ação penal para que quinze réus fossem julgados pelo juiz natural, mantendo-se apenas o réu detentor do mandato de deputado federal sob o julgamento originário do Supremo Tribunal Federal. Segue trecho da ementa:
AP 600/SP
DECISÃO
COMPETÊNCIA – PRERROGATIVA DE FORO – PROCESSO – DESMEMBRAMENTO.
AÇÃO PENAL – DILIGÊNCIAS – COMPLEMENTAÇÃO.
1. O Gabinete prestou as seguintes informações:
(…)
2. A competência do Supremo é de direito estrito. As balizas que a revelam estão na Constituição Federal. Normas instrumentais comuns, como são as relativas à conexão probatória e à continência, não a elastecem. No mais, cumpre concluir as diligências requeridas pelo Ministério Público Federal.
3. Providenciem:
3.1. O desmembramento do processo, formando-se autos para remessa ao Juízo da 2ª Vara Federal Criminal Especializada em Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional e Crimes de Lavagem de Valores da Seção Judiciária de São Paulo, visando a sequência da ação penal no tocante àqueles que não detêm a prerrogativa de serem julgados pelo Supremo. Neste, deve permanecer a ação quanto ao Deputado Federal;
3.2. A complementação das diligências, tal como preconizado pelo Ministério Público Federal.
4. Publiquem.
Brasília, residência, 02 de março de 2013, às 13h.
Ministro MARCO AURÉLIO Relator
(AP 600/SP, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 02/03/2013, publicado em DJe-08/03/2013)
Interessante notar que a justificativa para a própria existência da competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar alguns agentes públicos é justamente a de evitar pressões políticas externas que comprometam a imparcialidade do julgamento, seja para absolver, seja para condenar, considerando-se que a formação profissional e experiência dos integrantes da Corte Suprema lhes daria idoneidade suficiente para resistir inclusive à opinião pública, permitindo atenção aos autos, às provas e, estritamente, à Constituição.
Ao negar o desmembramento da Ação Penal 470, contrariando a jurisprudência dominante até então, a Corte adotou um comportamento no mínimo antagônico com a própria razão de ser de sua competência originária.
A tese da existência de um tribunal de exceção para julgar os réus da Ação Penal 470, alguns deles ligados ao Partido dos Trabalhadores, não fica mais forte apenas pela recente decisão democrática acima citada, mas também quando verificamos que no Inq 2.280/MG, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, instaurado para apurar o “Mensalão Tucano”, o desmembramento do feito foi deferido sem qualquer estardalhaço ou atenção dos setores conservadores da imprensa que, desde sempre, detêm maior poder sobre os meios de comunicação no país.
Segundo o Ministro Marco Aurélio, em voto prolatado no julgamento do Inquérito 2.462-7/RO, de Relatoria do Ministro Cesar Peluzo, a prerrogativa de foro deve ser vista como uma exceção estritamente prevista na Constituição e que não pode ser alargada por normas instrumentais comuns, sob pena de ferir de morte garantias constitucionais. Segue um trecho do voto:
“Há mais, verifica-se o envolvimento de cidadãos que teriam, constitucionalmente, direito a certos juízos naturais. E a atração do processo para esta corte, sem norma constitucional que a preveja, acaba por ferir de morte – é o meu convencimento – o princípio do juiz natural, o princípio do devido processo legal, até porque ocorrerá o julgamento em penada única, aspecto negativo da própria prerrogativa de foro, quando normalmente existe a possibilidade de revisão de possível decreto condenatório. O Supremo também pode errar quer na arte de proceder, quer na de julgar e, decidindo, não há a quem recorrer”. (Inq 2462, Relator Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 05/06/2008, DJe-162 DIVULG 28-08-2008 PUBLIC 29-08-2008 EMENT VOL-02330-01 PP-00098) (grifos nossos)
A supressão das garantias constitucionais dos réus da Ação Penal 470 em detrimento da preservação das garantias constitucionais dos acusados do “Mensalão Tucano” nos faz refletir sobre mais uma garantia constitucional violada: o princípio da igualdade.
A análise dos princípios violados pelo julgamento originário perante o Supremo Tribunal Federal merece artigo e estudo próprio, posto que a supressão do direito ao duplo grau de jurisdição, se é inconstitucional para aqueles que não detém prerrogativa de função, também é inadmissível para aqueles que a detém, o que nos leva a refletir sobre a inconstitucionalidade do próprio dispositivo constitucional, diante de princípio supralegal que foi reconhecido pelo Brasil ao assinar o Pacto de São José da Costa Rica na Convenção Americana de Direitos Humanos.
Desta forma, concluímos as presentes reflexões com a transcrição do artigo 8º, 2, h, do Decreto 678/1992, que internalizou no Brasil o Pacto de São José da Costa Rica:
“Artigo 8º – Garantias Judiciais
Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
(…)
h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”.
Gabriela Shizue Soares de Araujo é advogada, mestranda em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, vice-presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Subseção de Osasco da OAB-SP e diretora de relações intersindicais do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo.