Por Pedro Paulo Carriello* em Covid nas prisões
Talvez até o final dessa angústia não teremos uma resposta.
Estaremos um pouco diferentes, alguns até serão catalogados como sobreviventes – os intramuros. Pior que a peste vem de várias formas, ocupa todos os lugares, toda gente e sufoca uma esperança. Não é A Peste de Camus, não é a literária ou representativa! É real, encontramos vidas nas narrativas e muitas mortes… muitas!
Não há muros ou contêineres que impeçam o efeito perverso dessa peste, ela consegue desumanizar relações ou transformar corpos presos em mercadorias.
Alguns corpos chegam às covas.
Esperamos uma resposta da ciência, das áreas de saúde pública e da própria medicina para um conforto… teremos!!! Nunca três letras expressaram tão bem a dimensão da saúde pública.
Entretanto temos uma travessia. Os humanistas, os comprometidos com os valores sociais e de solidariedade necessitam atuar, precisam construir pontes, mas essencialmente nesse momento assegurar valores, direitos e princípios civilizatórios para os mais vulneráveis dessa crise. Ficar em casa é essencial, mas dela fazer um castelo de ideias, reuniões, lives, tarefas, construções de manifestos, ações políticas e judiciais, além de atividades que pavimentem nossos propósitos. É um agir quase isolado no seu lar, mas com uma coletividade de encontros virtuais que proliferam numa produção significativa de tomada de medidas e divisões de tarefas. Agimos e resistimos, propomos e contrapomos, opomos e confrontamos – construímos.
Não vejo de outra forma uma instituição pública. Há um dever de agir, um ativismo de proteção, de exigência tomada de medidas administrativas, politicas, acionárias e de constante diálogo com os destinatários em razão do papel que ocupa nesse cenário. As ouvidorias ganham relevo.
Os coletivos se fortalecem na busca por uma espécie de – todos juntos somos mais fortes! Refletindo, debatendo, dialogando e escolhendo os caminhos jurídicos e participativos para uma efetividade dos direitos de diversas gerações. Caminhando pela ciência, pela razão humana, quer pela engenharia constitucional que temos possibilidades concretas de redução de danos ou até mesmo de medidas eficazes ao bem estar social. Há sempre uma arquitetura penal digna que merece ser mais que desenhada, efetivamente construída!
Entidades estatais, de caráter público ou mesmo privadas devem fortalecer a ideia do coletivo, sem perder suas autonomias e limites, mas devemos agir de forma cooperada, conjunta ou ainda que individual, mas no escopo de integração com os fins mais republicanos e humanitários. Esse é um papel que merece ser visto, uma espécie de estratégia de amici (não só nos tribunais, importante, mas de afetos e arranjos em prol dos direitos fundamentais dos grupos dos mais vulneráveis ) – um sociedade aberta de soluções.
Assim chegamos naturalmente à Defensoria Pública e aos assistidos.
Ora, qual seria o papel da Defensoria Pública nessa mencionada travessia? De imediato não pode ser diferente da bússola constitucional lá determinada, como um norte – o acesso à justiça! Porém algo que transcenda o papel normativo e busque alterar realidades.
A Defensoria Pública é uma instituição essencial no sistema de justiça, tendo como função constitucional e democrática o acesso à justiça para todas as pessoas vulneráveis. A primazia dessa função no campo das instituições públicas e jurídicas impõe uma defesa de direitos de toda ordem, de um ativismo institucional que busque uma transformação social até um atuar que evite maiores danos e prejuízos aos destinatários. Somos por natureza, claro, contramajoritários na busca dos direitos fundamentais.
Neste contexto, torna-se essencial que participemos como instituição jurídica de defesa dos vulneráveis com uma análise crítica às propostas de manutenção do encarceramento em massa; de interpretações ou restrição do uso do habeas corpus coletivo na pandemia; de medidas que venham aniquilar o direito de defesa e realizações de audiências sem a mínima segurança dos regramentos processuais; que inviabilizam o direito de petição numa vara de execuções penais ou que no juízo da infância haja um proceder que o infante fique desprotegido.
Publicamente apoiamos a Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça, o desencarceramento e o cuidado com os profissionais do sistema prisional.
A pandemia ingressa no sistema prisional, sendo já noticiado o número de mortes em percentuais maiores. Estamos agindo com celeridade no campo penal, na busca de frear o encarceramento ou buscando melhorias na própria execução penal com medidas de saúde pública. Merece destaque a vertente na proteção individual de alguns assistidos em situação de risco ou de grau de vulnerabilidade pela pandemia, além de algumas ações coletivas como Habeas Corpus, solicitações de providencias ao CNJ – Conselho Nacional de Justiça e a participação em ação direta ou arguição de descumprimento de preceito fundamental de competência originário do Supremo Tribunal Federal.
A Defensoria Pública tem dado uma dimensão nacional nesse trinômio: prisão/covid/saúde, com o manejo de habeas corpus coletivos para idosos, tuberculosos, mulheres em gestação ou lactantes, devedores de alimentos, crimes afiançáveis e regimes de penas compatíveis com o domiciliar, todos como principal ativo na defesa das pessoas presas.
Devemos ainda lembrar três grandes preocupações no atuar nesse cenário nacional da Defensoria Pública na pandemia e o sistema penitenciário. O primeiro é olhar o preso como pessoa dignamente humana que pode ser atingida pelo Covid-19, em especial, aqueles integrantes do grupo de risco, merecendo assim, um tratamento diferenciado e de solução que o sistema já indica: prisão domiciliar! Vale lembrar um aviso de um colega, para ingresso no CTI não há necessidade de uma folha limpa de antecedentes criminais, ou seja, o colapso do sistema será para todos. Outro ponto, inclusive bem alinhado por Hugo Fernandes Matias e Kenarick Boujikian em artigo publicado no Conjur – A Pandemia e a tutela coletiva da liberdade – é a necessidade do poder judiciário como um todo compreender da essencialidade de solução coletiva ou de determinado grupo de risco, alterando análises individuais que acarretam uma diversidade de processos para uma única só demanda, possibilitando mais segurança e uniformidade de decisões. Estamos em crise, inegavelmente, assim uma decisão judicial permite um tratamento macroprocessual.
Os grupos determinados de maior vulnerabilidade ou com morbidade acentuada como os idosos, tuberculosos e as mulheres grávidas ou lactantes merecem na pandemia um olhar diferenciado, tendo já no Superior Tribunal de Justiça medidas que contemplam pedidos de liberdade, prisão domiciliar ou outras medidas de esfera de proteção. Há um arcabouço constitucional rico nesse caminhar, além da importância da Recomendação 62 do CNJ e as paradigmáticas decisões já tomadas em alguns habeas corpus coletivos ou individuais pelo próprio STJ e STF. Exemplos internacionais não faltam de medidas que foram tomadas nos presídios no escopo da prevenção e do desencarceramento.
Por fim, vale destacar a importância da questão racial na pandemia e no sistema penal, com a continua política de encarceramento em massa da juventude periférica, tanto pela já conhecida seletividade penal, como pelo número de mortos e seu perfil de cor e local de moradia. São partes do mesmo problema, do mesmo contexto social. Não podemos perder de vista ou tornar “invisível” a periferia! Ela vai sofrer ainda mais com essa pandemia de saúde e social em razão de acúmulos de falta de serviços essenciais, dificuldades em ter moradias ou unidades sem o mínimo existencial. Até o lavar às mãos ou ter um computador com serviço de internet para aulas online das crianças é fator que desestabiliza, diferencia e gera enormes prejuízos na formação. Uma violência do “não ter” que retira por completo a possibilidade de ter ou construir algo.
Ufa. Ainda não terminamos a travessia … eis que ouvimos notícias de tiros no quintal, berros, crianças e familiares correndo.
“Fiquem em casa!” Estão em casa! Mas ela chegou de outra forma epidêmica, rápida, perfurante, sufocante, dilaceradora e fatal! Sim, o vírus da cotidiana violência para o preto, pobre e periférico.
– Ah, não tem vacina? Morreu de vírus?
– Não, foi bala, Mano!
*Pedro Paulo Carriello é Defensor Público atuando nos Tribunais Superiores
Leia o artigo em: https://www.covidnasprisoes.com/publicacao-da-semana