A própria ideia de “bloco” diz respeito a um conjunto de coisas consideradas como uma unidade sólida e unificada, que não pode ser dividida.

Por Anna Normanton no Migalhas

O estudo do bloco de constitucionalidade brasileiro possui fundamental relevância jurídica e social, pois seu reconhecimento e consequente aplicação têm alto potencial de contribuir para a efetivação da promoção e proteção dos Direitos Humanos no país. É por meio do bloco, por exemplo, que se permite que as normas internacionais de Direitos Humanos sejam usadas como parâmetro de controle de constitucionalidade, de maneira que o Poder Executivo, o Poder Judiciário e o Poder Legislativo devem observá-las, sob pena de incorrerem em inconstitucionalidade por ação ou omissão. A principal consequência do reconhecimento do bloco de constitucionalidade é a ampliação do paradigma para a realização do controle de constitucionalidade de normas.

O início da teoria do bloco de constitucionalidade se deu na França, a partir da teoria administrativista do chamado “bloco de legalidade”, fundada com base nas atividades desenvolvidas pelo Conselho do Estado, órgão designado para exercer o controle dos atos administrativos no ordenamento jurídico francês. Nessa perspectiva, o bloco de legalidade caracteriza-se como um conjunto de normas a formar um todo normativo de igual estatura hierárquica. A própria ideia de “bloco” diz respeito a um conjunto de coisas consideradas como uma unidade sólida e unificada, que não pode ser dividida.

Posteriormente e também na França, a teoria foi adaptada para o Direito Constitucional. Em síntese, bloco de constitucionalidade pode ser definido como o conjunto de normas que, juntamente com o texto escrito da Constituição de um Estado, formam um bloco normativo de status constitucional. Em seguida, a teoria encontrou adeptos na Espanha e de lá se difundiu para a América Latina, onde ecoou na doutrina e na jurisprudência, além de contemporaneamente contar com positivações em Constituições de alguns Estados da região.

Entretanto, deste lado do Atlântico houve esforço teórico para que a influência europeia não se caracterizasse como mera reprodução acrítica do instituto para os países latino-americanos. Buscou-se adaptar a teoria às necessidades e condições do direito constitucional desses países, nos âmbitos regional e nacional. A principal adaptação reside no fato que na América Latina as normas integrantes do bloco de constitucionalidade, juntamente com as Constituições, são normas de origem internacional, essencialmente decorrentes de normas do Direito Internacional de Direitos Humanos, como é o caso da Constituição argentina (artigo 75.22).

Dessa forma, o bloco de constitucionalidade na América Latina visa a cumprir duas funções principais: 1) resolver a questão de hierarquia interna dos tratados internacionais de direitos humanos, estabelecendo um mecanismo horizontal de harmonização entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos; 2) consolidar o uso do Direito Internacional como reforço aos compromissos dos Estados em matérias de Direitos Humanos.

Neste ponto, surge o questionamento: é possível que normas decorrentes de tratados internacionais de Direitos Humanos possuam hierarquia e natureza jurídica de normas constitucionais no ordenamento interno dos Estados? Para tratar da relação entre direito internacional e direito interno, um tanto quanto impactada pela nova realidade da pluralidade de ordens jurídicas, é necessário analisar o instituto da soberania.¹

Quanto à relação entre soberania e Direito Internacional, conforme a teoria da autolimitação do Estado, esse pode, caso julgue adequado, assumir obrigações externas, sujeitando-se voluntariamente às limitações impostas por normas de direito internacional. Assim, as restrições determinadas ao Estado por si mesmo não representariam uma diminuição de poder, porque estabelecidas em decorrência de sua própria vontade e de seu interesse.

Especificamente quanto aos Direitos Humanos, consoante acertadamente afirma Celso Lafer, transita-se de uma concepção hobbesiana de soberania, centrada no Estado, para uma concepção kantiana do instituto: de uma visão ex parte principe, fundada nas prerrogativas estatais, passa-se a uma visão ex parte populi, voltada para os direitos do cidadão perante o Estado.² No contemporâneo, cada vez mais se busca substituir o termo “súdito” pelo conceito de “cidadão”.³ O Estado não é e não deve ser considerado fim em si mesmo, mas sim um meio para o desenvolvimento da sociedade e de seus indivíduos. A partir do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor supremo e inatingível, verifica-se a tendência contemporânea dos ordenamentos jurídicos em reconhecer os indivíduos como o centro e o fim do Direito.

No Brasil, o art. 5º, §2º da Constituição da República corrobora a escolha constituinte em prol do reconhecimento da força expansiva da dignidade humana e dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Nos termos do referido dispositivo, os direitos e garantias expressos na Constituição (ou seja, direitos fundamentais) não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que o país seja parte.

Todavia, a controvérsia consiste em saber se as normas internacionais de Direitos Humanos presentes nos tratados que o Brasil é signatário, apesar de não estarem previstas no texto constitucional, possuem ou não estatura e natureza jurídica de normas constitucionais. A posição pelo status de normas constitucionais está longe de ser pacífica na doutrina e na jurisprudência brasileiras.

É possível identificar quatro interpretações principais sobre a natureza e hierarquia das normas internacionais de Direitos Humanos em nosso ordenamento: 1) natureza e hierarquia supraconstitucionais, em face de sua origem internacional, que deve predominar sobre as normas constitucionais; 2) natureza e hierarquia constitucionais, em decorrência da cláusula de abertura estabelecida pelo art. 5º, §2º da CRFB; 3) natureza e hierarquia supralegais, acima da lei, mas inferior à Constituição; 4) natureza equiparada à lei ordinária federal, em razão do suposto silêncio constitucional sobre as normas de direitos humanos, de maneira que a elas deveria ser aplicada a mesma estatura que às normas referentes aos tratados em geral.

Até 2008, o entendimento do Supremo Tribunal Federal era no sentido de que as normas presentes nos tratados internacionais de direitos humanos possuíam a mesma hierarquia que as leis federais. Em 2008 houve mudança de entendimento acerca do tema perante a Corte. Prevaleceu tese da supralegalidade, que não favoreceu a doutrina do bloco constitucional.

A fim de responder à polêmica controvérsia sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, a Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, introduziu um terceiro parágrafo ao artigo 5º, a dispor que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Assim, tendo em vista o impasse doutrinário e a resistência do Supremo Tribunal Federal em reconhecer aos tratados de Direitos Humanos natureza e estatura diferenciadas, buscou-se via emenda constitucional a positivação expressa da hierarquia equivalente a normas constitucionais dessa espécie de tratados internacionais, desde que aprovados sob o rito e quórum exigidos pelo referido parágrafo 3º.

Todavia, a redação final aprovada pelo constituinte derivado frustrou e muito as expectativas da doutrina especializada, pois condicionou a existência de natureza e hierarquia equivalentes a normas constitucionais ao rito similar aquele das emendas constitucionais. Nessa quadra, à medida que se passou a exigir quórum de aprovação mais rigoroso e em dois turnos de votação, a Emenda Constitucional 45 tornou a incorporação de tratados internacionais de Direitos Humanos mais dificultosa, caso se opte por lhes conferir internamente estatura de normas constitucionais.

Como se não bastasse, a redação do dispositivo, ao usar a expressão “que forem”, sugestiona a existência de dois tipos de tratados de direitos humanos pós Emenda 45: de um lado, aqueles não aprovados sob o rito específico, que possuiriam estatura de normas supralegais e, de outro, aqueles aprovados sob o rito do art. 5º, §3º, com estatura equivalente a normas constitucionais.

Dessa forma, a alteração constitucional trouxe ainda mais controvérsias, desarranjos e incertezas. Lamentavelmente, foi uma solução infeliz dada pelo constituinte derivado, que perdeu a oportunidade de alterar a redação do art. 5º, §2º da Constituição, de maneira a tornar mais expressa a existência do bloco de constitucionalidade brasileiro, a fim de espancar qualquer controvérsia, e optou por inserir um novo parágrafo que trouxe mais dúvidas e polêmicas.

Isso porque o art. 5º, §2º da Constituição, tal como positivado pelo poder constituinte originário, já reconhece a existência do bloco de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro, incluindo nesse bloco as normas decorrentes de tratados internacionais de Direitos Humanos que o Brasil é signatário. Nessa perspectiva, partindo-se do método de interpretação histórico, é importante a referência que o professor e jurista Antônio Augusto Cançado Trindade, um dos responsáveis pela redação do referido dispositivo, afirma expressamente em mais de uma de suas obras que a intenção do poder constituinte para o parágrafo 2º do art. 5º era justamente de conferir às normas internacionais de Direitos Humanos a mesma estatura dos direitos fundamentais.

Do mesmo modo, partindo-se do método de interpretação teleológico, é evidente que a finalidade do referido parágrafo, tal como foi escrito, é de conferir às normas internacionais de Direitos Humanos a mesma estatura dos direitos fundamentais.

Igualmente, a partir do método sistemático de interpretação das normas constitucionais, conclui-se que ao interpretar a Constituição de 1988 como um todo e considerando ser a dignidade humana seu princípio fundante, bem como a especial importância conferida aos Direitos Humanos ao longo de todo o texto constitucional, conclui-se que as normas internacionais de Direitos Humanos incorporadas pelo país compõem seu bloco de constitucionalidade.

Da mesma forma, a partir da aplicação do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, chega-se exatamente à mesma conclusão, tendo em vista que o reconhecimento da estatura constitucional às normas de Direitos Humanos é capaz de dar maior proteção e efetividade a tais direitos, bem como aos direitos fundamentais.

Portanto, questiona-se se é dada ao poder constituinte derivado a possibilidade de subverter a legítima escolha feita pelo poder constituinte originário. A resposta é negativa, sobretudo tendo em vista o princípio da vedação ao retrocesso, pois, ao cabo, o parágrafo §3º do art. 5º confere uma proteção menor aos Direitos Humanos que aquela conferida pelo poder constituinte inaugural da Constituição Cidadã de 1988.

Assim, impõe-se o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da estatura constitucional das normas de Direitos Humanos presentes em tratados internacionais incorporados ao ordenamento interno, a fim de que o bloco de constitucionalidade brasileiro – com a presença de tais normas – seja finalmente reconhecido. Além disso, é de extrema importância que o poder constituinte derivado, a fim de sanar o imbróglio causado pela Emenda Constitucional 45, altere a redação do §2º para prever expressamente a hierarquia constitucional de tais normas, bem como suprima o §3º.

Obviamente, o tema do bloco de constitucionalidade e estatura das normas de Direitos Humanos desperta diversos desdobramentos e debates. Assim, diante de sua complexidade, impossível esgotar a temática no presente artigo. Todavia, em breve será lançado livro de minha autoria sobre o assunto, fruto de minha dissertação de mestrado, em que discuto e analiso com maior profundidade a temática do bloco de constitucionalidade, sobretudo sua relação com as normas internacionais de Direitos Humanos, bem como suas consequências e desdobramentos.

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1. A soberania, conforme Dalmo de Abreu Dallari, é o poder de decisão em última instância do Estado sobre a eficácia de qualquer norma jurídica. (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 38.)

2. LAFER, Celso. Comércio, desarmamento, direitos humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 145.

3. Em última instância, pode-se afirmar que o exercício da soberania pelo Estado Democrático de Direito, cujo objetivo é a promoção do bem comum e do bem-estar dos indivíduos e grupos de indivíduos que nele habitam, implica no exercício do respeito, de proteção e de garantia dos direitos humanos.

*Anna Normanton

Advogada graduada pela PUC-SP. Especialista em Direitos Humanos (CLACSO). Mestra em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP e mestra em Direito Constitucional pela PUC-SP. Pesquisadora e professora assistente da Faculdade de Direito da PUC-SP.