Longe de ser uma data comemorativa ou comercial, como muitos equivocadamente pretendem diminui-la, o dia – e todo o mês internacional da mulher – se presta a levantar o debate público sobre a desigualdade e a violência de gênero.

Por Por Gabriela Shizue Soares de Araujo[1] no Migalhas

Embora oficializado pela Organização das Nações Unidas apenas em 1975 como Dia Internacional da Mulher, o 08 de março possui raízes históricas muito mais antigas, que remetem à luta das mulheres por igualdade de gênero na política e no ambiente de trabalho, sendo que a primeira a propor que se criasse uma data específica para marcar a mobilização de mulheres por direitos iguais em todo o mundo foi a alemã Clara Zetkin, em 1910, durante o II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhagem.

Longe de ser uma data comemorativa ou comercial, como muitos equivocadamente pretendem diminui-la, o dia – e todo o mês internacional da mulher – se presta a levantar o debate público sobre a desigualdade e a violência de gênero, mobilizando protestos e reorganizando a luta daquelas que conquistaram direitos civis e políticos formais há quase um século, mas ainda não conseguiram vê-los concretizados em uma sociedade de raízes patriarcais tão arraigadas em todas as suas instituições.

O modelo democrático representativo que marcou a conquista de direitos civis e políticos no Ocidente, tendo como maior símbolo as revoluções burguesas do século XVIII, fundou-se sobre uma dicotomia do público-privado e em estereótipos de gênero para justificar a negação desses direitos às mulheres.

O próprio Jean Jacques Rousseau, considerado por muitos como o “pai da democracia moderna”, entendia que a esfera pública de debate deveria ser uma prerrogativa dada apenas aos homens, dotados de maior racionalidade do que as mulheres, sendo a estas reservados os papéis domésticos da maternidade e dos cuidados com o lar, ou seja, sua vivência e sua voz seriam restritas à esfera privada e familiar.

Infelizmente, sob o pretexto de que o “sexo mais frágil, dócil e sensível” não precisaria participar da vida pública, pois estaria representado pelos pais, irmãos, filhos ou maridos, os homens tiveram uma vantagem de séculos de gozo de direitos e liberdades civis e políticas sobre as mulheres.

Na maioria dos países ocidentais, as mulheres somente conquistaram o direito de votarem e serem votadas ao longo da primeira metade do século XX, muito em razão das guerras e da Revolução Industrial, que permitiram a sua entrada mais massiva no mercado de trabalho e a sua própria organização, seja via movimento operário em busca de melhores condições de trabalho, seja via movimento sufragista.

No entanto, quase um século depois, embora as Constituições e legislações reconheçam formalmente que homens e mulheres são iguais em deveres e direitos, o que se vê como um fenômeno global é um verdadeiro abismo de oportunidades entre os gêneros, que se agrava ainda mais quando adicionado de fatores de opressão interseccionais como raça, classe, renda ou orientação sexual.

No Brasil, menos de 15% dos assentos da Câmara dos Deputados são ocupados por mulheres, sendo que menos de 2,5% são mulheres negras, paradoxalmente em um país em que 52,5% do eleitorado é formado por mulheres, a maioria delas negras. Dos 27 Estados da Federação, apenas um é governado por uma mulher – a governadora Fátima Bezerra, do Rio Grande do Norte -, e somente 13% dos municípios são liderados por mulheres prefeitas.

O que se percebe é que houve uma abertura – tardia – para que mulheres entrassem no mercado de trabalho e exercessem suas liberdades civis e políticas, mas as barreiras para que possam de fato ter voz e papel de liderança persistem, sustentadas por estruturas e instituições fundadas no patriarcado e dominadas majoritariamente por homens brancos e heterossexuais que não querem abdicar de seus privilégios – um símbolo disso é o banheiro feminino no plenário do Senado Federal ter sido inaugurado apenas em 2016, como se o Congresso Nacional não estivesse preparado para receber mulheres como senadoras.

A sub-representação das mulheres nos espaços públicos de poder e de liderança não é uma característica verificada apenas na política. De acordo com levantamento do Migalhas realizado em novembro de 2020, de 90 ministros das Cortes Superiores, divididos entre cinco tribunais, apenas 14 são mulheres, um percentual de 15,5%. Juntando os Tribunais de Justiça de todos os Estados brasileiros, as mulheres desembargadoras representam apenas 20% do total, com destaque para o Estado de São Paulo, onde há 358 desembargadores para apenas 33 mulheres.

Na advocacia o quadro não é muito diferente: sem jamais ter sido presidido por uma mulher, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil atualmente é composto apenas por 23 mulheres, de 81 conselheiros, representando 28,3% do total.

A misoginia, os estereótipos de gênero, a injusta divisão sexual do trabalho e a consequente jornada dupla imposta às mulheres ainda são fatores determinantes em pleno século XXI, para que a dominação masculina predomine, muitas vezes em forma de exploração da força de trabalho feminina, necessária para sustentar as bases, mas impedida de escalar o topo da pirâmide.

Eis porque, repise-se, o reconhecimento da existência de uma cultura patriarcal e misógina na sociedade e em todas as suas instituições não apenas é necessário como também não deve ficar restrito às vozes dos movimentos feministas. Reconhecer a sua existência impõe reconhecer também que tais estruturas não cederão ao simples estabelecimento formal de igualdade de direitos, sem que sejam pensadas políticas públicas que busquem a eliminação substancial das desigualdades de gênero e a compensação por séculos de opressão dos homens sobre as mulheres.

Nesse sentido, as cotas afirmativas, ainda que provisórias, rumo ao ideal de democracia paritária, têm obtido os melhores e mais rápidos resultados. De acordo com o ranking de participação feminina no parlamento, atualizado mensalmente pela organização internacional União Interparlamentar, embora a baixa média mundial seja de 25,5%, a maioria dos países em que a média é igual ou superior a 50% adotam ou já adotaram políticas afirmativas com reservas de vagas para mulheres em assentos ou listas partidárias, como é o caso de Ruanda, primeiro lugar no ranking mundial, com representatividade de 61,3% de mulheres em seu parlamento.

Com um certo atraso, e por construção jurisprudencial, a partir de 2018 as cotas afirmativas para inclusão de mulheres no parlamento brasileiro passaram a ter mais efetividade.

Embora desde 1997 os partidos fossem obrigados a reservar 30% de suas chapas proporcionais para candidaturas femininas, a falta de financiamento e visibilidade em propaganda eleitoral acabavam por inviabilizar a eleição dessas candidatas – muitas vezes transformadas em “candidaturas laranja”. Trata-se de mais um exemplo prático das barreiras estruturais arraigadas em nossas instituições que impedem a ascensão de mulheres aos espaços públicos de poder.

Após decisões jurisprudenciais consideradas ativistas por muitos – porque o Parlamento, majoritariamente composto por homens brancos, não abriria mão de seus privilégios -, as mulheres passaram a ter o direito de receber pelo menos 30% dos recursos públicos de campanha recebidos pelos partidos políticos, além da visibilidade em propaganda eleitoral. E, nas Eleições de 2020, o recorte racial foi incluído, também por decisão jurisprudencial, a esse percentual: ou seja, as candidaturas de mulheres e homens negros deveriam ser financiadas e obter visibilidade na medida de suas apresentações.

Sob forte protesto das lideranças partidárias e das elites secularmente instituídas no poder, tais alterações já começaram a produzir efeitos, embora ainda muito tímidos, com o crescimento gradativo de mulheres no Poder Legislativo, inclusive com a ascensão de mais mulheres negras e representantes da comunidade LGBTQIA+.

Na mesma esteira, a Ordem dos Advogados do Brasil decidiu que nas próximas eleições, que ocorrerão neste ano de 2021, as chapas que concorrerão às seccionais e às subseções da OAB deverão cumprir com paridade de gênero, apresentando obrigatoriamente 50% de mulheres, além de cotas afirmativas com pelo menos 30% de negros.

Antes disso, o Conselho Federal da OAB já havia decidido que pelo menos 30% das palestrantes em eventos promovidos pelo órgão deveriam ser mulheres, resolução que tem sido seguido por algumas universidades do país, como a Faculdade de Direito da USP, a qual estabeleceu um mínimo de 25% de mulheres em suas palestras, congressos e seminários.

Afinal, outro fenômeno muito emblemático na academia é o epistemicídio e a invisibilidade com que se silenciam as vozes das mulheres pesquisadoras e docentes, sendo comum, se não a regra, bancas de mestrado e doutorado compostas hegemonicamente por homens, além de seminários, congressos e mesas de debates, bem como a dominação masculina nos postos de direção das universidades.

Recentemente, as empresas privadas também passaram a adotar políticas de inclusão e diversidade em suas contratações. Uma das grandes entusiastas das cotas de gênero e raciais na iniciativa privada, a empresária Luiza Trajano, defende que sejam estabelecidas tais políticas na formação dos conselhos de administração e cargos de liderança empresariais, em consonância com normativa internacional com relação à responsabilidade social das empresas na promoção e proteção dos direitos humanos.

Destarte, não são apenas as políticas públicas que vão dar visibilidade e acesso às mulheres aos postos de liderança, mas é necessário que as cotas afirmativas e iniciativas de inclusão sejam pensadas em todos os espaços da sociedade, posto que o que se combate não é mais um ordenamento jurídico desigual, isso já foi superado, o que as mulheres enfrentam é toda uma educação e estrutura cultural fundada sobre a desigualdade de gênero e a opressão, o que ganha contornos muito mais violentos se adicionarmos os componentes de raça, classe, renda, escolaridade e orientação sexual.  

Neste mês internacional da mulher, o que se espera é uma maior mobilização social sobre a responsabilidade de cada setor no enfrentamento à violência e desigualdade de gênero: mais ação, mais empatia, menos floreios. Que a homenagem seja feita a todas aquelas que nos precederam e nos inspiram nessa luta, e especialmente às vítimas do sexismo e do machismo que matam e vitimizam cinco mulheres por dia no Brasil: que suas memórias nos impulsionem a jamais desistir por um mundo mais justo, igual e solidário.


[1] Mestre e Doutoranda em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Justiça Constitucional e Tutela Jurisdicional dos Direitos pela Universidade de Pisa (Itália). Professora no curso de graduação da Escola Paulista de Direito (EPD) Diretora do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo. Advogada. E-mail: gabriela@gabrielaaraujo.com