Publicado em 15 de Outubro de 2004.

    Regulamentação do direito de greve do servidores públicos

    João José Sady*

    Embalada nos tempestuosos eventos da paralisação cometida pelos servidores do judiciário paulista, vem enfunando suas velas a pressão pela regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Com certeza, os pregoeiros desta proposta tão aclamada, vão sugerir que o poder público seja municiado de draconianas medidas punitivas contra os grevistas e que estes, vejam restringidos de modo drástico os caminhos para exercer este direito constitucional.

    A cada fratura traumática da paz social, saudosas viúvas da ditadura militar gritam em coro enfurecido por medidas enérgicas que punindo severamente os distúrbios, venha a restaurar a estabilidade tão necessária aos que usufruem efetivamente dos privilégios que a carta política assegura aos cidadãos. Para os que não tem acesso à cidadania plena porque lhes falta renda, resta a conclamação à disciplina, à responsabilidade, ao respeito à legalidade. Estas vozes autoritárias que exigem o respeito ao Direito, se erguem virulentas contra os sem-teto, os sem-terra, os grevistas, etc., que movidos por suas necessidades, desrespeitam regras postas pelo Direito.

    Este sonho dourado da Direita, imaginando que o uso da autoridade e da disciplina podem conter os insatisfeitos, com o tempo, se desfaz no ar e os entusiastas do tacape vão desembarcar no território do pesadelo. A última vez que a fórmula autoritária foi maximizada em nossa terra com o sinistro golpe militar de 1964, a suposta “fórmula mágica” resultou na falência completa do país que terminou por ser devolvido aos civis em estado de catástrofe.

    A verdade é que o único desrespeito à legalidade que incomoda a tantos nesta greve dos judiciários reside na falta da prestação dos serviços. Os mesmos entusiastas da repressão, contudo, não tem se manifestado com idêntica energia e criatividade com relação ao desrespeito ao Direito que está na origem do movimento grevista.

    A causa principal da intensidade do movimento, todavia, pode ser localizada no fato de que os trabalhadores não obtiveram da Assembléia Legislativa, o reajuste salarial de 26,39% proposto pelo Tribunal de Justiça. No entanto, dispõe o artigo 55 da Constituição do Estado de São Paulo que “ao Poder Judiciário é assegurada autonomia financeira e administrativa.– parágrafo único: são assegurados, na forma do art. 99 da Constituição Federal, ao Poder Judiciário recursos suficientes para manutenção, expansão e aperfeiçoamento de suas atividades jurisdicionais, visando ao acesso de todos à Justiça”. É bastante peculiar a este esquizofrênico território da ordem jurídica, o fato de que os servidores cometam noventa e um dias de greve reivindicando o índice de reajuste que o próprio “empregador” se dispôs a conceder-lhes.

    Afinal, se a Assembléia Legislativa nega ao Tribunal de Justiça o reajuste dos salários dos servidores nas balizas propostas, como é que se pode dizer que está sendo respeitada a “autonomia financeira e administrativa” do Poder Judiciário ? O tipo de autonomia existente é revelado por dados que só agora vem sendo revelados : “no orçamento destinado ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para despesas com o pessoal (incluídos 39.201 funcionários ativos, 9.644 inativos, 1.788 magistrados em exercício e 650 aposentados), em 2003, foi proposta a cifra de R$ 4.348.929.501; no entanto, foi-lhe destinado R$ 2.455.688.226, o que representa pouco mais da metade (56,46%) da quantia solicitada. No ano de 2004, ainda no mesmo item, para a proposta de R$ 5.502.448.505, foi concedida a quantia de R$ 2.391.397.170, ou seja, menos da metade (43,46%)”.

    Este é o tipo de ilegalidade de que ninguém quer falar porque tangencia o questionamento da base do problema. O poder público tem obrigações para com os servidores e não as cumpre. O Poder Judiciário, neste quadro, encontra-se em posição extremamente paradoxal.

    A carta política lhe atribui administrar estes serviços mas, a massa salarial de seus trabalhadores é definida pelo Poder Legislativo. Não adianta, e não adiantou neste caso concreto, o Tribunal reconhecer a procedência do reclamo dos servidores e pleitear ao Legislativo o seu atendimento. A greve, em tal cenário, fica extremamente paradoxal. O “empregador” para o fim de tomar as providências para debelar a greve, fica sendo o Judiciário mas, para o fim de lidar com a reivindicação, é o Legislativo. Por detrás deste, o Executivo que, na verdade, é quem manda e desmanda no desenho orçamentário sob os aplausos de um dócil parlamento estadual.

    Tudo isto somado, temos o farisaico cenário em que o coro diz que as reivindicações dos judiciários são “justas” mas, não há dinheiro para cumprir o disposto no artigo 37, X da CF-88 e atribuir-lhes a revisão anual de vencimentos em termos decentes. De um modo indireto, a Constituição é revogada duplamente. De um lado, porque ela não é cumprida sob a alegação de que não há dinheiro para obedecer aos seus mandamentos e pagar o que é devido. De outro, porque ela não é regulamentada, no capítulo da greve dos servidores, revogando, também indiretamente, o referido direito constitucional.

    Os arautos da repressão clamaram por punições e energia, em razão da suspensão da prestação dos serviços públicos. No dia a dia, contudo, estes mesmos serviços foram se deteriorando ao longo dos anos porque não se destinava verba ao atendimento do crescimento da demanda. A quantidade de servidores diminuiu e o salário real dos mesmos foi reduzido, enquanto que a quantidade de litígios vem crescendo vertiginosamente. Num Tribunal que demora anos para distribuir um recurso a ele dirigido, falar em prejuízo causado pela greve, é algo um tanto forçado. Estas limitações orçamentárias vem servindo à coativa redução da massa salarial dos servidores e provocando a deterioração dos serviços. Não será dotando o Tribunal de meios mais eficazes de punição que se conseguirá evitar a repetição da tempestade.

    O direito de greve dos servidores públicos deve ser regulamentado. Isto é crucial, em face da posição do STF que vê a norma como de eficácia limitada. Os conservadores, contudo, não vêem tal regulamentação como uma forma de possibilitar o acesso ao exercício de tal direito mas, ao contrário, como um artefato para limitar sua aplicação. Este é o viés que vem nublando a discussão sobre o tema. Não se discute como viabilizar que os judiciários recebam a revisão anual da perda salarial causada pela inflação, de uma forma justa e razoável. Ao contrário, a discussão está em como evitar que eles suspendam os serviços por não conseguirem concretizar este direito que lhes é atribuído pela Constituição Federal. A fórmula mais eficaz de evitar greves de servidores públicos, reside em assegurar que o artigo 37, X da carta política seja integral e pontualmente respeitado.

    *João José Sady é Advogado, Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP e Professor na Universidade de São Francisco, em São Paulo