Necessidade de avanços nos investimentos e da implementação de políticas regulatórias
Por Glauco Pereira dos Santos no Migalhas
No âmbito do sistema global de proteção dos direitos humanos, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, passando pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos – PDCP e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, ambos de 1966, os direitos humanos saíram do campo filosófico e adentraram no mundo jurídico. De acordo com os princípios do direito internacional, foram sendo incorporados a cada um dos Estados que os ratificaram até, no caso do PIDESC, chegar a trinta e cinco Estados partes que permitiu que ele entrasse em vigor somente dez anos após a sua adoção, em 1976. No caso do Brasil, apenas em 1992 ele foi ratificado e passou a compor o nosso ordenamento jurídico. Hoje o PIDESC conta com cento e setenta e uma adesões.
Historicamente, os tratados e convenções de direitos humanos reconheceram mais e mais direitos, ampliando os objetos dos bens da vida juridicamente protegidos, assim como os sujeitos de direitos. Dessa forma, juntamente com os direitos humanos tradicionalmente identificados com os “direitos do homem” desde o Iluminismo (as liberdades públicas, os direitos fundamentais do indivíduo,) passaram também a ser considerados novos direitos com fundamento na igualdade material, procurando os ordenamentos jurídicos de cada Estado garantir mais ou menos acesso a bens econômicos e sociais essenciais, concretizáveis em prestações estatais, que assim são chamados de direitos econômicos, sociais e culturais.
Até hoje, o país que representa a liderança do capitalismo mundial, os Estados Unidos da América, não ratificou o PIDESC, pois não reconhece aos seus cidadãos os direitos à saúde, ao trabalho, a condições de trabalho justas e favoráveis, à sindicalização, à greve, à previdência social, à proteção e assistência especiais à família, às mães, às crianças e adolescentes, a um nível de vida adequado, à educação, à participação na vida cultural e à democratização do progresso científico.
Aliás, o principal motivo pelo qual os direitos humanos foram divididos em dois pactos diferentes foi justamente porque os EUA se recusavam a reconhecer os direitos econômicos, sociais e culturais, seguindo a tradição liberal de que não cabe ao Estado assegurar prestações positivas.
Mas já em 1968, na I Conferência Mundial de Direitos Humanos de Teerã foi proclamada a indivisibilidade dos direitos humanos, segundo a qual o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais é conditio sine qua non para o pleno exercício dos direitos civis e políticos. Depois, em 1993, na Declaração e Programa de Ação de Viena, é que se afirmou por todos os Estados participantes que os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes. A cisão do que antes estava unido na Declaração Universal dos Direitos Humanos foi condenada pela Conferência Internacional de Direitos Humanos de Viena, que o diplomata José Augusto Lindgren Alves afirmou ter representado para os direitos humanos aquilo que a Rio 92 representou para o meio ambiente.
Assim, não há que se falar em respeito a direitos civis políticos sem que os direitos econômicos, sociais e culturais também sejam respeitados.
Norberto Bobbio ao descrever o caminho da universalização dos direitos humanos no campo do Direito Positivo, ressalta a ampliação do objeto e dos sujeitos de direitos, favorecida pelas condições históricas contemporâneas da situação objetiva da vida humana, que gerou novas necessidades, exigindo novos mecanismos protetivos, que demandam o dever de agir de quem tem de atender o interesse público, ou seja, precipuamente o Estado. As reivindicações da sociedade civil e a realidade excludente de bilhões de pessoas sem acesso aos direitos humanos civis e políticos, como resultado dos conflitos de interesses na sociedade fizeram com que se internacionalizassem. Já os direitos econômicos e sociais, inspirados, teoricamente, pelas teses socialistas (utópicas e científicas)1, pela doutrina social da Igreja Católica e por economistas como o norte-americano John Maynard Keynes acabaram por ser positivados no PIDESC sob a incidência do princípio da universalidade.
Em função da solidariedade e em nome da dignidade humana, pessoas físicas e jurídicas, de direito privado e de direito público, incluídos os Estados estrangeiros que são parte dos tratados internacionais de direitos humanos, passaram a assumir o dever de cooperar para que esses direitos sejam fruídos, em igualdade de condições, por todos os membros da espécie humana, notadamente aqueles fragilizados. Assim, existem deveres do Estado e de todos para com a coletividade.
Esse é o caso certamente do Brasil, que incorporou ao seu ordenamento o PIDESC.
Sendo o nível de vida adequado previsto no PIDESC um direito de todos e como são poucos no mundo que de fato exercem esse direito, a questão do direito à água é emblemática no enfrentamento dessa desigualdade, em que pese não estar expresso no texto do Pacto. Esse direito veio, de toda sorte, ser reconhecido em tratados posteriores, como veremos.
Já que estamos no mês de março, no qual se celebra o Dia Internacional da Mulher, é importante lembrar que o direito à agua foi primeiramente positivado na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, aprovada pelas Nações Unidas em 1979 e ratificada pelo Brasil em 2002, ao expressar que, especialmente em áreas rurais, as mulheres têm direito a gozar de condições de vida adequadas, particularmente nas esferas da habitação, dos serviços sanitários, da eletricidade e do abastecimento de água, do transporte e das comunicações. Assim, surge o acesso à água potável como direito internacionalmente reconhecido. É notável que ele surja primeiramente em uma norma que trate dos direitos das mulheres e isso não se deu por uma abstração do campo ideológico, mas em função da dura realidade, presente até hoje, em que mulheres e meninas sofrem regularmente discriminação e desigualdades no gozo de seus direitos humanos à água potável segura e ao saneamento em muitas partes do mundo.
Posteriormente, é a vez do direito à água aparecer na Convenção sobre Os Direitos da Criança, segundo a qual elas têm o direito de gozar do melhor padrão possível de proteção à saúde, sendo para isso adotadas pelos Estados partes as medidas apropriadas com vistas a combater as doenças e a desnutrição, dentro do contexto de cuidados básicos de saúde, mediante, v.g., o fornecimento de água potável.
Enfim, embora não se trate de um tratado internacional, a resolução 64/A/RES/64/292, adotada em 28 de julho de 2010 pela Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu o acesso à água potável e ao saneamento como um direito humano que é essencial para o gozo pleno da vida e de todos os demais direitos humanos.
Retomando o aspecto da desigualdade no gozo de um nível de vida adequado reconhecido pelo PIDESC e sendo, ainda, a água potável e o saneamento direitos humanos essenciais para a erradicação da pobreza e para a construção de sociedades pacíficas e prósperas, segundo o Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Mundial da Água de 2019, existe uma desigualdade substancial entre famílias faveladas e não faveladas no acesso a instalações de água e saneamento. A urbanização rápida associada ao controle inadequado sobre o desenvolvimento físico e os investimentos por parte das autoridades locais significa que bolsões de favelas continuarão a surgir em pequenos centros urbanos. Essa tendência de crescimento de favelas deve ser medida e levada em consideração no planejamento de água, saneamento e infraestrutura. Em particular, o planejamento precisa ser instituído, com estratégias claras de urbanização de favelas que contam com água e saneamento.
Por outro lado, o Relatório deixa claro que investir em serviços de abastecimento de água, saneamento e higiene em geral, e para os vulneráveis e desfavorecidos em particular, faz sentido do ponto de vista econômico. Uma das razões por trás da não prestação de serviços adequados a esses grupos é a suposição de que não podem pagar por eles. No entanto, os vulneráveis e desfavorecidos, que normalmente não estão conectados a sistemas encanados, muitas vezes pagam mais por seus serviços de abastecimento de água do que suas contrapartes conectadas, haja vista, v.g., que a água comprada de caminhões pipa é mais cara que a água encanada, representando, assim, uma oneração maior do orçamento das famílias pobres do que as de maior renda.
Somente no Brasil, a OMS estima que quinze mil pessoas morram por ano (84% crianças) devido a doenças ligadas ao saneamento básico precário.
Passamos, neste exato momento pela pior fase da covid-19 e sabemos que, além do isolamento social e do uso de máscara, o principal meio de prevenir a doença é lavar as mãos com água e sabão. A ausência de fornecimento regular de água, portanto, é um fator de risco permanente para a população mais pobre, que vem sofrendo de modo mais agudo com a incidência do coronavírus, não apenas pela falta de água, como pela dificuldade em praticar o isolamento, tendo em vista o espaço reduzido das moradias precárias em que habitam.
Sob o aspecto constitucional, o direito à água potável e ao saneamento básico se atinge mediante a prestação de serviço público incumbido ao Estado que pode prestá-lo diretamente ou sob regime de concessão (art. 175 da CF) e deve ser analisado de modo a compreender que a manutenção do status adquirido pelos investimentos e pela operacionalização dos serviços não pode licitamente ser perdido e que há um dever estatal de manter o fornecimento aos usuários de acordo com standards mínimos. Assim ensina Joaquim José Gomes Canotilho, em sua obra Direito constitucional e teoria da Constituição, na qual se refere ao princípio da proibição do retrocesso social.
Tal princípio se aplica não apenas a artigos da Constituição, como, em sua própria decorrência às leis que disponham sobre a proteção social. Veja-se nesse sentido:
“O núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo social. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado.2“
No caso da água, os direitos a ela relativos têm seu fundamento legal na Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (lei 9.433/97) que reconhece a água como um bem de domínio público, como um recurso natural, limitado, dotado de valor econômico, que em situações de escassez o uso prioritário dos recursos hídricos deve se destinar ao consumo humano e a dessedentação de animais, que a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades, dentre outros fundamentos.
O órgão que implementa a Política Nacional de Recursos Hídricos é a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), entidade federal integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh) e responsável pela instituição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico.
A lei ainda estabelece que a cobrança pelo uso da água objetiva reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor, incentivar a racionalização do uso da água e obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos.
Nos contrafortes do direito público, as taxas remuneram o serviço público de coleta de esgoto sanitário e de distribuição de água domiciliar. Servem tanto para remunerar o concessionário do serviço público, como para proteger o usuário. A Lei de Concessões (Lei 8.987/95) prevê que toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido na lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato de concessão ou permissão. Serviço adequado na dicção da lei é aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas, que, no dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello é um dos direitos mais relevantes do usuário, tendo em vista que a prática de valores tarifários elevados redunda na inobservância de preceito constitucional (art. 175, parágrafo único, IV).
Assim, tendo em vista que os serviços que permitem o exercício do direito à água potável e ao saneamento devem estar acessíveis a todos, a lei estabeleceu que as tarifas devem ser módicas e para tanto previu a possibilidade de outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, em benefício das concessionárias.
Ainda no panorama legislativo, recentemente entrou em vigor o novo Marco Legal do Saneamento, que, a despeito de suas metas de cobertura de 99% para o abastecimento de água e de 90% para a coleta e tratamento de esgoto até 31 de dezembro de 2033, assim que foi publicado foi objeto de questionamento por duas ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade)3, em pontos como a competência da ANA e dos municípios e o fim dos contratos de programa (que são celebrados por empresas estatais e os poderes concedentes) não havendo ainda um posicionamento definitivo do STF sobre nenhuma delas, o que dificulta a atuação dos agentes econômicos públicos e privados neste momento em que se coloca em jogo a forma pela qual irá se garantir a universalização do serviços de distribuição de água e de saneamento.
Sob uma ótica mais ampla da regulação, há ainda a incidência de novas legislações, como a lei 13.848/19 (Lei das Agências Reguladoras) e a lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), que trouxeram a previsão das Análises de Impacto Regulatório – AIRs, precedentes às propostas de edição ou alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários de serviços públicos. As AIRs vieram a ser regulamentadas pelo decreto 10.411/20. Da mesma forma, a LINDB (Lei Introdutória às Normas do Direito Brasileiro), já vinha no sentido de determinar que a Administração Pública deve levar em consideração as consequências práticas dos atos administrativos, não podendo decidir somente com fundamento em valores jurídicos abstratos.
Às vésperas do Dia Mundial da Água, comemorado em 22 de março, urge que trabalhemos para garantir o acesso sustentável à água limpa, potável e de qualidade, sem deixar de respeitar o meio ambiente, buscando o uso racional dos recursos hídricos, diminuindo a poluição da água e garantindo práticas que contribuam para a manutenção desse bem público, de acordo com o princípio da proibição do retrocesso social.
A covid-19 nos alerta sobre a essencialidade do abastecimento de água e saneamento. Para evitar que as mortes continuem ocorrendo aos milhares por dia precisamos de água limpa para lavar as nossas mãos e de sistemas de esgotamento e tratamento sanitário para o escoamento das águas e o destino adequado. Isso é tão ou mais cristalino quanto a necessidade de vacinação para toda a população.
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1 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, p. 127-128. São Paulo. Companhia das Letras. 1988.
2 Joaquim José Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 158. Lisboa. Almedina. 2003.
3 ADIns 6.492 e 6.536.
Glauco Pereira dos Santos é Advogado e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP.