À luz do dia, ao arrepio da lei, à margem do ordenamento jurídico e apesar dos nossos melhores esforços, é tão componente do cotidiano quanto o noticiário vespertino a criminalidade aberta, a vontade insaciável de prejudicar, atrasar e retroceder. De fazer o mal, sem olhar a quem.

Por Raphaella Reis no Migalhas

Inefáveis e insustentáveis são as celeumas criadas pela Humanidade. Vemos milhares destas nascerem e crescerem no seio social diariamente. Não há diálogo, não há construção; há guerras de absolutos, sem preocupação com o progresso.

À luz do dia, ao arrepio da lei, à margem do ordenamento jurídico e apesar dos nossos melhores esforços, é tão componente do cotidiano quanto o noticiário vespertino a criminalidade aberta, a vontade insaciável de prejudicar, atrasar e retroceder. De fazer o mal, sem olhar a quem.

Vivemos tempos selvagens. Tempos em que nossa Humanidade cede lugar à literalidade da condição humana – somos apenas animais. O homo sapiens não deixou de ser mamífero por ser homo sapiens; é só mais um entre todos os animais andando neste planeta. Dizem que somos a única espécie inteligente no planeta; uma olhadela nas redes sociais mais influentes desfaz esta noção.

Há quem diga que só os humanos podem se comunicar e compreender o mundo à volta. Porém, cães e gatos precisam de alguns meses de convivência para entender o ambiente e se comunicar com ele; o homo sapiens ainda não consegue diferenciar claramente os sons feitos por outros animais. O homo sapiens mal consegue depreender e interpretar os próprios sons; em cada canto deste planeta, uma Babel diferente nos espera, atrelada à miséria das incompreensões.

Podemos continuar a discussão por eras a fio, mas ela criaria uma celeuma. Nós, seres humanos, temos celeumas absurdas com as coisas mais contraditórias possíveis; é inefável. É insustentável. Temos ainda o brilhantismo de permanecer indefinidamente presos a celeumas tão velhas quanto o tempo. Celeumas que erguemos, contra toda a Natureza, contra tudo que somos, e nas quais permaneceremos, até que o planeta resolva descontinuar este experimento chamado Humanidade – por insustentável. Já estamos chegando lá.

Acompanhamos, na última semana, esta humanidade animalesca num ciclo autofágico de selvageria em uma de suas celeumas mais antigas: o aborto. Atrocidades foram cometidas por quem se diz de bem, e só professa o Mal nesta Terra. Muito se fala em Deus nestas épocas. O que fica, no entanto, é a cautela das trancas nas portas, com tantos lobos à espreita, em suas melhores peles de ovelha, Bíblias em punho, dentes à mostra.

À advocacia, cabe a indispensabilidade na administração da Justiça. Cabe agir e restabelecer o equilíbrio. Cabe a defesa da Constituição Federal, e da ordem democrática, da forma mais temporada possível. É com esta missão em mente, outorgada no segundo em que recebemos a carteira profissional, que precisamos lembrar a todos: o Estado é laico.

O Estado não pode agir para preservar os interesses de uma religião, em desfavor da sociedade, sob qualquer pretexto. O Estado não pode fugir às suas obrigações e recusar procedimentos cirúrgicos por pressão religiosa; não pode se demorar a garantir o direito líquido e certo de alguém pelos dogmas de dados credos.

Ao Estado, é dado fazer cumprir, fielmente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. E nada mais. A Constituição resguarda o direito ao “planejamento familiar“. O Código Civil declara que a pessoa se inicia com o nascimento com vida.

O Código Civil também resguarda os direitos do nascituro (o ser que ainda não nasceu com vida) até este momento. Mas existe uma diferença gigante entre resguardar – deixar reservado para a eventualidade – e garantir – confirmar e proteger algo que é líquido e certo. A pessoa é líquida e certa. Está aí no mercado fazendo compras, na academia, no restaurante, em todo canto. As pessoas existem. São certas, e tem direitos garantidos. Os nascituros? São grandes possibilidades. Mas não são certezas. Coisas podem acontecer, e eles deixam de existir.

Cumpre destacar que a Constituição Federal emprega todos os seus esforços para proteger, de forma pétrea, a pessoa humana, com todos os seus aspectos abstratos e bens jurídicos (a liberdade, a integridade física e moral, a dignidade, a vida – que é um bem da pessoa, querendo ou não – a igualdade, a segurança, a propriedade…). Essas coisas são garantidas à pessoa. Aquela que existe, que é líquida e certa, tem tudo isso e muito mais. Esta é uma Constituição humanista, inspirada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, para afastar as gárgulas e espectros da Ditadura Militar. Ela se preocupa com o máximo que os seres humanos podem alcançar sendo pessoas.

O princípio da dignidade da pessoa humana é a base de todo o ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição, ao dispor este princípio no art. 1º, III, não diz o que ele é ou como deve ser aplicado; diz apenas que é princípio constitucional. Para compreender seu significado, a amplitude de seu alcance e a inserção da família neste escopo, convém analisar sua definição e origens.

Kant cunhou, em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a expressão “dignidade da natureza humana” para designar temas fundamentais e intrínsecos ao indivíduo, preciosos o suficiente para serem preservados por toda a coletividade1.

[…] a dignidade da pessoa humana é, e sempre será um valor idêntico que todo ser humano tem por que é racional e afetual (sensível). Não há relatividade da capacidade que permita eliminar a razão de um ser humano; é por isso que, do ponto de vista ético, no Direito todo ser humano tem o mesmo valor. […] É o reconhecimento de que não importa quais sejam as circunstâncias ou qual o regime político, todo ser humano deve ter reconhecido pelo Estado o seu valor como pessoa, e a garantia, na prática, de uma personalidade que não deve ser menosprezada ou desdenhada por nenhum poder.

A vulgarização da expressão kantiana (ou seja, a troca da palavra natureza por pessoa para facilitar a compreensão do conceito já no enunciado) não afasta a importância do princípio. E neste escopo, a exigência constitucional de seu reconhecimento pelo Estado infere dever de garantia a todos dos meios necessários para a consolidação e afirmação de personalidade e individualidade, com tudo que é inerente a tais aspectos, diante da sociedade.

Não há espaço para distorção. A vida é um bem jurídico da pessoa. Não é um ideário incorpóreo a ser atribuído conforme os desígnios dos lobos. É um direito indissociável da pessoa, nascida, crescida, plenamente incorporada à sociedade, por suas diversas camadas.

A escolha de ter um filho ou não – sendo “escolha” um aspecto jurídico da liberdade, aquela que a CF garante – está dentro do planejamento familiar. A Constituição inclusive determina que o Estado garanta os meios para que o planejamento familiar possa ser plenamente desenvolvido pelo cidadão.

Em escopo positivo e escopo neutro, é o que vemos: o acompanhamento obstétrico e pediátrico, a prevenção da concepção. O planejamento familiar inclui os subsídios necessários para que se possa manter a unidade familiar, em cuidado constante de suas expansões, ou em controle para evitar que isso ocorra.

Este planejamento familiar deve, necessariamente, incluir o escopo negativo. Deve resguardar a escolha; deve preservar o “não ter”. Embora sejam os direitos do nascituro resguardados (ou seja, reservados para caso ele nasça com vida e vire uma pessoa), eles não são garantidos (confirmados e protegidos), como os direitos da pessoa que o carrega (a mãe).

O direito de escolha tem previsão constitucional. A Lei Maior deixa inequívoco o direito de escolher entre gerar mais vida ou não. E determinou que o Estado nos desse todos os meios pra isso.

Esta mãe, esta pessoa cheia de garantias do Quinto Constitucional e à qual é outorgado o direito de planejar sua família, deveria poder ir ao médico e dizer “eu não quero ter este filho”. Existe previsão constitucional – a lei maior que eu, que você, que o Edir, que o Silas, que a Sara, que o Jair, que o Luiz, que o Sérgio, que todos os (outrora, antes do genocídio) 200 milhões de brasileiros juntos, maior que todo mundo. Por que, então, a celeuma?

Por que permitimos que a sandice tome o lugar da razão e nos leve a violar a Constituição em favor de um ideário que nós, o povo brasileiro, rejeitamos inequivocamente quando promulgamos a Constituição Federal? É incompreensível, é inefável, que estejamos, em 2020 – o ano que em muitas obras de ficção deveriam se realizar e deveríamos ver o progresso, o futuro – envoltos nesta celeuma, de forma tão bestial.

Bestial. A exposição acima é perfeitamente aplicável a pessoas adultas; o planejamento para elas deveria ser uma possibilidade de exercício livre. Podemos, enquanto adultos, debater esta temática – e todas aquelas correlatas – à exaustão. Jamais, em tempo algum, deveríamos discutir este tema tendo crianças no epicentro. A criança deve brincar. Deve explorar o máximo do mundo para formar sua identidade, informar sua consciência, afirmar sua individualidade diante do mundo.

A criança não deve ter a si atribuído o peso monstruoso de ter de pensar em planejar família. E o fato de termos lançado este debate a uma criança de 10 anos com tamanha agressividade – a socos, pontapés, ofensas, dentes à mostra, Bíblias em punho – expõe o estado de putrefação a que está fadada a sociedade brasileira, debaixo do manto desta Constituição Federal, que tanto juramos proteger.

Hediondo. É estarrecedor constatar a naturalidade com que tantos dizem que uma criança, de 10 anos de idade – infanta que sequer saiu do ensino básico, que ainda acredita na grande aventura de atravessar uma rua movimentada, que deveria ser criança – deve carregar o fardo de planejar uma família após anos e anos de violações sistemáticas à seu corpo, sua integridade, suas memórias, sua segurança, sua infância propriamente dita.

É particularmente asqueroso observar que não há ineditismo neste horror. Nossas crianças são sistematicamente violentadas2 das formas mais covardes possíveis. É doloroso constatar o estado avançado de decomposição em que se encontra a sociedade brasileira, que é obrigada a realizar 2.190 abortos em crianças entre 10 e 14 anos por se negar sistematicamente a proteger estas crianças.

Abominável. Todos os dias, internamos pelo menos 6 crianças, e temos de realizar estes procedimentos nelas. E isso representa menos da metade das crianças de até 13 anos estupradas por dia. São 4 a cada hora. 24 por dia. 8.760 por ano. O Brasil registra uma média anual de 26 mil partos de mães com idades entre 10 a 14 anos, a maioria estuprada dentro de casa, por pais, tios, avôs. E nós achamos isso normal; o escândalo é remediar o horror ao não forçar uma criança a gerar outra criança, procedimento que muitas vezes lhe é fatal.

É assustador ver a normalidade com que se ignora a principiologia de proteção integral e de prioridade absoluta da criança e do adolescente, em favor de uma celeuma que além de não ter cabimento, não ter sequer bases para se aplicar ao caso. Crianças não devem engravidar. Crianças não devem engajar em atividades sexuais. crianças não devem ser forçadas a interromper sua formação e seu desenvolvimento de forma tão trágica e tão traumática.

Temos deveres com as crianças deste país; é obrigação de cada um de nós protegê-las, dar a elas a oportunidade de serem crianças. E falhamos miseravelmente quando permitimos que qualquer um – seja Sara, Silas, Edir, Feliciano, Damares, qualquer um, de alto a baixo – roube, à luz do dia, a infância destas crianças, que são nossas, para o cuidado.

Talvez – apenas talvez – a racialidade explique toda esta bestialidade, e a deixe ainda mais empedernida. Afinal de contas, falamos de uma criança negra, num Estado antinegro. Falamos de uma criança negra. Pessoas brancas a agridem desde seus primeiros segundos no hospital; pessoas brancas ponderam se a esta criança negra, o exercício de um direito será franqueado.

Pessoas brancas descartam solenemente o cumprimento da lei, expondo e devassando a vida, a intimidade e a privacidade desta criança nas redes sociais. Pessoas brancas impedem que esta criança negra tenha um descanso minimamente adequado, ofendendo sem parar na porta de um hospital. Pessoas brancas, sistematicamente, colocam esta criança negra no não-lugar reservado para o racismo da sociedade brasileira, onde as pessoas nunca são racistas, mas podem concluir que pessoas negras são criminosas, em razão de suas negritudes.

Falamos de uma criança negra, inserida numa sociedade que lhe força a servir desde o útero. Uma criança negra, que tem sistematicamente negada a cidadania; uma criança negra, que como tantas outras, não tem reconhecido por esta sociedade seu direito a ter direitos. O recorte racial faz com que uma monstruosidade sem precedentes, como a perpetrada por hordas de pessoas nesta semana, tenha requintes ainda mais repugnantes de crueldade.

Chegamos a um estado tal de depravação que dilaceramos nossas crianças em prol de uma celeuma sem sentido aos olhos da Lei, diariamente, enquanto silenciamos, apoiamos e até juramos amor eterno aos algozes. Monstros sem nome, a quem se protege intimidades e identidades, às custas da infância, da adolescência, da sanidade e das garantias constitucionais de quem realmente deveríamos proteger. Somos nós os lobos, condenando a inocência enquanto perdoamos aqueles que não merecem perdão. E Hobbes tinha total razão.

Estamos envoltos nesta celeuma insustentável, enquanto mulheres morrem às pencas em clínicas clandestinas, crianças são violadas sem cerimônias pelo Estado e pela sociedade – se é que podemos chamar esta anomia sinistra assim. Isso que testemunhamos estupefatos nada tem a ver com a moral e os bons costumes, menos ainda com a religião. É fruto de algo mais nefasto, que precisamos urgentemente erradicar de nossos meios, para consagrar o projeto constitucional de sociedade livre, justa e solidária.

Precisamos defender nossa Constituição, nossa ordem democrática. Precisamos proteger nossas crianças, e atacar estes algozes que tanto saqueiam aquilo que temos de mais caro nesta sociedade. Precisamos resgatar o respeito, o bom senso e a Humanidade – não essa que observamos, em seu aspecto mais bestial. Aquela que Gandhi achava uma ótima ideia.

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1 MANERICK, Rosa Maria dos Santos. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e sua efetividade no direito de família. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 1, n. 1, p.518-541, set. 2006. Disponível clicando aqui. Acesso em fev. 2015.

2 MAGENTA, Matheus; ALEGRETTI, Laís. Brasil registra 6 abortos por dia em meninas entre 10 e 14 anos estupradas: Exposição de vítimas de estupro tende a aumentar estigma em relação à criança e à família. BBC News Brasil, Londres, 17 ago. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 17 ago. 2020.

*Raphaella Reis de Oliveira é advogada vice-presidente da Comissão de Graduação, Pós-graduação e Pesquisa da OAB-SP. Conselheira representante do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo (SASP). Vice-presidente da Comissão da Jovem Advocacia do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo (SASP).