Por Roberto Tardelli, na Carta Capital
A dívida externa é metade do PIB, a recessão é gigantesca e todos se referem aos anos que passam como a década perdida. Desemprego em massa e a violência explode nos grandes centros, muito em função de uma política de exclusão social, que concentra a maior parte dos recursos obtidos no pagamento dos juros da dívida, alimentando uma agiotagem sem fim.
Grandes obras públicas, icônicas, são paralisadas e ninguém faz a menor ideia do quanto se gastou, quanto se sangrou de recurso público em obras gigantescas, feitas a partir da obtenção de financiamento externo, estimulando uma corrupção nunca antes registrada, em que bilhões de dólares simplesmente foram cobertos pela Selva Amazônica. O país se desmancha e os senhores do castelo não sabem como fazer.
As pessoas saem à ruas e a porradaria chega sem dó. Guardas batem duro e atiram-se com cavalos, cacetetes e bombas sobras as multidões. O Presidente da República está isolado. Uma frente ampla, da direita à esquerda se forma, para tirar o país da zona de caos em que foi atirado. Tão isolado estava o Rei que seu candidato perde as prévias em seu próprio partido, sendo absolutamente certo que esse partido somente existia para chancelar todo e qualquer ato do Governo Central, ao qual era umbilicalmente atrelado, mas nenhuma mudança à vista, a disputa fora apenas cartorial e tudo parece correr como antes, não fosse a frente eleitoral levar milhões de pessoas às ruas, pedindo o fim, exigindo que se fossem e nem mais cavalos, cavalarias, bombas e porradas parariam as multidões de todos os dias pelo país.
Institucionalmente caótico, economicamente falido, impopular, com as maiores taxas de desemprego da história, com a corrupção altamente profissionalizada se dando bem, a censura prévia selecionava previamente o que poderia e o que não poderia o povo saber, a miséria fazia vitimas fatais da fome endêmica, a inflação registrando níveis de pós-guerra, perdemos o sentido do valor das coisas e todos corríamos atrás da alta de preços, que mudavam de uma hora para outra.
O regime militar fez outras vítimas invisíveis, dentre todas, o pensamento. Um regime de censura prévia desestimulou a criação artística, literária e científica. A mediocridade foi se impondo porque pensar era perigoso, porque pensar desafia e desafiar poderia custar a prisão ou a vida.
Eu me lembro das aulas de Direito de professores temerosos que se limitavam a ler a letra da lei. Liam os Códigos (de Constituição não se falava, mesmo porque não existia) e criaram um modo de reproduzir informações, mas jamais de multiplicar conhecimento.
A geração que antecedeu o golpe militar e foi por ele atingida como um meteoro não foi substituída: Milton Nascimento, Chico, Caetano, Gil e outros que se foram, uns dizimados nos porões da ditadura, como Geraldo Vandré que, para dizer que não falei flores, falou e foi preso por ter falado de flores que venciam canhões.
Criou o regime mais concentrador de rendas no planeta, sob um slogan que era preciso primeiro fazer o bolo crescer, para, somente então, começar a reparti-lo.
Nascido nas ruas, nascido na massa, nascido e batizado no povo, apenas o futebol-arte, por ter sido aprisionado pelo regime militar encantava o mundo. Nossa última geração dos craques de rua perdeu para a Itália, em 1982, mas encheu a todos nós de orgulho e identificação.
Capturado pela ordem unida, nosso futebol também mudou. Nem ele escapou. No colapso urbano que a ditadura protagonizou, no mais impressionante êxodo rural já vivido, o futebol migrou para as escolinhas, para instrutores e, bem, não preciso contar o restante da história.
Não há nada a se comemorar na data de hoje, que, nas ironias a que estamos acostumados em nossa Vera Cruz, o diabo e sua cadela fascista passeiam no jardim, estão famintos ambos e eles nos detestam. Ao lado, velhos generais, comemorando o que ninguém que fosse civilizado teria coragem de comemorar.
Eles estão mal intencionados.