A dúvida acerca da vocação é justificada, toda profissão, ao menos para aquela parcela da população que pode escolher, deve ser uma espécie de sacerdócio, e não a procura por apenas reconhecimento, estabilidade.
Eidy Lian Cabeza e Felipe Meleiro Fernandes no Migalhas
Se a premissa de que a sabedoria é adquirida com o tempo e com as experiências no decorrer de uma vida inteira, a resposta para tantos equívocos jurídicos, polarizações em ambientes que deveriam – por força de princípios, costumes e principalmente da letra da lei – serem isentos, está na falta que a vivência faz na formação de um “operador” do Direito.
Vivenciamos um momento histórico de retrocessos jurídicos e também de Direitos Humanos em que magistrados e promotores se auto intitulam “salvadores da pátria” e se regozijam da fama de “justiceiros” e o Poder Judiciário deve obedecer e ser conduzido pelo momento político, pela polarização irresponsável que faz princípios importantes do Estado Democrático de Direito parecerem meras palavras esquecidas em uma folha de papel. Eles se deliciam com a fama e esquecem a vocação, que talvez nem tenham.
A dúvida acerca da vocação é justificada, toda profissão, ao menos para aquela parcela da população que pode escolher, deve ser uma espécie de sacerdócio, e não a procura por apenas reconhecimento, estabilidade – inclusive a financeira – e exercício de poder, sendo estes consequência desta “atividade sacerdotal” e não um fim em si mesmo.
Para todos os cargos do Direito, em especial a magistratura, promotoria, defensoria pública, procuradoria e advocacia, há que se ter vocação. Em verdade, para entender a condição humana e a sensibilidade para enxergar tal condição podemos dizer que “há que se ter vocação para a vida”.
Curioso é o fato que uma Constituição tão vanguardista e garantista quanto à de 1988, não pôde prever esse caos jurídico e de valores retorcidos que se instaurou no Poder Judiciário brasileiro. Ampliaram-se as jurisdições, mudaram-se regras de ingresso; ao Ministério Público e à advocacia fora dado destaque inédito, tribunais criados, matérias foram reforçadas, com a consequência de mais cargos a serem oferecidos e mais concursos.
Eis aí o início do caos, inúmeras faculdades de Direito, todo o tipo de professores e “cursinhos” preparatórios para concursos. Passamos a conhecer a figura do “concurseiro”.
Boa parte dos estudantes de Direito não almejava e não almeja seguir sua vocação, eles desejam e com forte incentivo da sociedade passar em um concurso e obter a tão almejada estabilidade. A busca por justiça foi ofuscada pela busca por reconhecimento, sem que uma levasse necessariamente a outra, como deveria ser a regra.
Esqueceu-se que a formação em Direito conforme consta da maioria dos diplomas é na verdade uma formação em ciências jurídicas e sociais. Todavia, parece que assim como as garantias constitucionais e os direitos vanguardistas previstos em nossa Carta Maior, as ciências sociais também nada mais o são que apenas letras em um papel timbrado.
Hoje, mais de um ano após o início da maior crise sanitária dos últimos cem anos, quando se esperava um mundo, uma sociedade – e um judiciário – mais empático, o que se vê é uma luta desenfreada para garantir meios de se permitir que a economia continue a “girar”, observamos atônitos, na Justiça Social do Trabalho, o fenômeno de Juízes e Ministros que declaradamente atentam contra a existência desta especializada, há também advogados que são contrários às leis trabalhistas ou mesmo ao devido processo legal; são figuras que se aprenderam sobre as regras que devem ser obedecidas em um processo não possuem nenhum pudor em defendê-las apenas para si e seus amigos, aos inimigos importa a condenação ainda que sob o arrepio da letra da lei.
Acompanhamos em choque, o Judiciário Trabalhista de São Paulo, na capital, através de magistrados sem nenhum apreço por uma das partes- geralmente àquela hipossuficiente cuja Reforma Trabalhista colocou em pé de igualdade ao Empregador- determinarem o comparecimento presencial à reclamante, funcionária pública da área da saúde e infectada pelo vírus do covid-19 à audiência presencial, colocando em risco todas as partes envolvidas no processo, incluindo servidores e advogados; também assistimos perplexos, o caso da advogada que mesmo internada após um acidente e tendo ficado presa sobre as ferragens, ainda que tenha juntado atestado médico e fosse a única advogada constituída, teve seu pedido de adiamento indeferido sob a fundamentação de que era-lhe facultada substabelecer outro advogado.
Decisões desarrazoadas como as citadas, infeliz e muito provavelmente por conta do tipo de formação dada aos “concurseiros” aspirantes a uma “vaguinha” em algum dos cargos oferecidos pelo Poder Judiciário, estão nos levando para uma crise de princípios e regras de ouro do direito, como a da dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência, mas também de valores universais como os da liberdade, igualdade e fraternidade que até parecem esquecidos ou revogados.
Esse fenômeno deve ser repensado e estudado, sob pena de voltarmos ao tempo da lei de Talião. O que faremos num dos países que mais infringe leis trabalhistas sem a Justiça do Trabalho e sem juízes comprometidos com esse direito social? O que faremos com advogados que prometem defender o Estado Democrático de Direito e os Direitos Sociais (entre eles os Direitos Humanos), mas não conseguem vislumbrar as armadilhas jurídicas expressas em leis que beneficiam o patronato em detrimento do trabalhador, que punem o inimigo sem respeito a regras que um estudante do 1º ano do curso de Direito poderia apontar?
É comum a essa “turma” que é boa parte da sociedade, em especial àquela que pode ficar em casa sem prejuízo de seus ganhos, apontar perplexa, em meio a uma crise sanitária mundial, praias e bares lotados, mas ignorarem trem, metrô e ônibus onde não se é possível dar um passo ao lado o que dirá manter um distanciamento seguro.
O questionamento a ser feito, se dá acerca da nossa formação jurídica, acadêmica e política, da maneira que aprendemos, divulgamos e aplicamos nosso conhecimento…
Urge a reflexão acerca da nossa vocação e da construção de uma carreira calçada por conhecimento de qualidade, respeito às leis e às instituições, comprometimento com o sagrado serviço público, compreensão e vivência de mundo. È necessário que para ter a capacidade de julgar se tenha experiência e sabedoria daquilo que não se pode aprender em um “cursinho” preparatório. Há algo que só o tempo traz para uma formação e seria muito importante que trabalhássemos para que isso fosse levado em consideração para os egressos de cargos públicos como os da magistratura, a título de exemplo.
Seria importante também que sejamos divulgadores e propagadores de informações verdadeiras, saindo da bolha que nos permite ver o mundo apenas sob o nosso prisma.
Há tempos juristas vêm nos alertando acerca do fato de que nossa formação acadêmica é quase sempre marcada por manuais de constitucionalistas que não possuem apreço às regras impostas pela Constituição, alguns se declaram saudosos da ditadura, não raro, observamos fundamentações em decisões que exprimem textos de cunho racista, machista, homofóbico, com preconceito religioso, xenofóbico, e até elitista.
Há figuras importantes na literatura doutrinária dos códigos processuais penais e civis que defenderam arduamente que decisões notadamente equivocadas, apontadas uma a uma pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, em voto televisionado ao vivo, inclusive na TV aberta, eram corretas porque aplicadas a figura que não possuía o apreço pessoal de determinada parcela desses juristas. Essas pessoas, assim como essas decisões, continuam por aí a desafiar o futuro do Poder Judiciário e, por consequência, o nosso futuro.
E nesta toada o sempre oportuno Lenio Streck1 em entrevista ao canal TVIAB afirmou que “as faculdades de Direito nunca formaram tantos fascistas como nos últimos anos” classificando como “negacionismo jurídico” o comportamento daqueles que reclamam do excesso de leis.
Importante refletir acerca da vocação necessária ao exercício prudente e apaixonado de qualquer profissão, caso contrário corre-se o risco de haver uma destruição das bases processuais e no caso dos patamares mínimos civilizatórios, o que assistimos hodiernamente e não nos permite concluir de forma contrária a não ser a falta de vocação aliado a um ensino jurídico empobrecido que apenas joga-nos goela abaixo textos e legislações sem saber o porquê delas existirem, como e qual escopo de sua criação e, sobretudo sem ter o senso crítico sobre.
Acerca do ensino jurídico que não nos ensina a refletir de modo crítico e muitos entoam por aí certas verdades como espécie de mantra, pode-se retratá-lo quase que fielmente com um trecho da canção Geração Coca-Cola, da banda Legião Urbana, eis que, “quando nascemos fomos programados a receber o que vocês, nos empurraram com os enlatados de USA.”.
Como já dito, inúmeros são os exemplos principalmente neste momento da tragédia sanitária que vivenciamos em terras tupiniquins a falta de vocação e de sensibilidade humana parece que se exorta!
Ao falar sobre ausência de vocação surge-nos os mais estrambóticos exemplos, tais como juristas de escola defendendo a inconstitucionalidade da Súmula 443, ou ainda dizendo que embora a derrota dos reclamantes na ADC 58, deveriam estes comemorar, pois como é de praxe na seara trabalhista deram além do pedido.(tal frase e conclusão não é nossa e sim de alguns juristas que defendem o “status quo”)
Há aqueles ainda que fazem uma análise rasa da CLT, se apegando a inconstitucional reforma e ao pobre texto lançado na lei 13.467/17, como a panaceia da solução do conflito capital x trabalho, por óbvio, em favor do empregador.
Estes que defendem com unhas e dentes tal legislação padecem da nítida ausência de vocação, sobretudo na seara que escolheram militar (sabe-se lá por que), esquecendo dos princípios basilares do Direito do Trabalho.
De se lembrar que um dos princípios que fundamentam todo orbe processual trabalhista e é geralmente olvidado, o princípio da oralidade, que vem sendo, diuturnamente espancado com as inúmeras decisões designando audiências de instrução virtual ou ainda, ignorando a dificuldade, em geral dos reclamantes, de possuírem um adequado acesso à internet ou ainda meios telemáticos que permitam tal acesso.
Parece-nos que muitos dos Juízes encontram-se judiciando na Noruega ou qualquer outro paraíso nórdico de IDH altíssimo, onde todos possuem meios adequados e acesso à internet de qualidade.
Esquecem que falamos, vivemos e trabalhamos em um país pobre em seu contexto geral e que ainda que estejamos na capital financeira do País e no Estado mais rico da federação, há sim altos índices de desigualdade e de pobreza, muitos hoje, não tem sequer o que comer e por isso buscam a Justiça do Trabalho para ver reconhecido o valor humano do trabalho e ter suas verbas de caráter alimentar e preferencial (embora muitos insistam em não reconhecê-las assim), pagas, e ainda assim o Judiciário faz vistas grossas à essa parcela da população e exige que tenham meios adequados de acesso à internet, daqueles que sequer tem o que comer!
Tudo isso ainda, ocorre à revelia da resolução 314/20 do CNJ que diz que basta a parte alegar impossibilidade para que a audiência seja redesignada, contudo, diversos juízes a ignoram e buscam bater metas e realizar audiências quase que a “fórceps”.
Vivemos uma era sombria potencializada pela crise causada pelo Sars-Cov-2, onde urge uma análise de nossa própria vocação e o que almejamos e lutamos por um mundo melhor, pois também, diante desta autoanálise que propomos de nada adianta apontarmos os dedos e criticar àqueles que evidentemente atuam sem vocação, se nós que somos vocacionados ao exercício sacerdotal da advocacia e em defesa dos direitos humanos não nos levantamos contra o que está posto, afinal, nos dizeres de Martin Luther King, “não me impressiona o grito dos maus, mas sim o silêncio dos bons”.
Tempos difíceis mostram a grandeza de algumas pessoas, mas também revelam o que de pior há em outras.
Eidy Lian Cabeza
Advogada trabalhista. Sócia do escritório Cabeza Feliciano. Vice-presidente da Comissão da Advocacia Assalariada da OAB/SP. Presidente da Comissão de Ética do MATI. Conselheira do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo (SASP).
Felipe Meleiro Fernandes
Advogado Trabalhista. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela USP. Conselheiro da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo – AATSP e do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo (SASP).