Ainda existem juízes em Berlim

    por João José Sady

Publicado em 11 d Novembro de 2004

    Existe uma lenda sempre lembrada nos livros de fábulas jurídicas, contando que um pequeno proprietário possuía sítio encravado no meio de terreno no qual o imperador da Alemanha pretendia construir um parque. O imperador chama o humilde cidadão e tenta, sem sucesso, convencê-lo a vender o imóvel. Exasperado, passa a ameaçar fazer uso de seus poderes para desalojar o teimoso jurisdicionado. Sem temor, o cidadão rechaça as ameaças, afirmando: “ainda existem juízes em Berlim”. Esta é uma lenda muito ao gosto da magistratura e representa um ideal de juiz que vive em nossos sonhos. É mais comum que os poderosos encontrem outro tipo de resposta. Veja-se o comportamento dos juízes alemães sob o nazismo e de certos magistrados franceses durante a ocupação germânica. Não é necessário ir muito longe, sendo que, por aqui mesmo,    podemos relembrar o nosso Supremo Tribunal Federal indeferindo a petição inicial do habeas corpus em favor de Olga Prestes porque não veio com a adequada estampilha. Nestes conturbados tempos de hoje em dia, a tempestade de violência se abate sobre Bagdá e daquele caos podemos extrair um exemplo emblemático. Recentemente, um magistrado mandou libertar umas tantas dezenas de cidadãos acusados de espionagem em favor do Iran, instaurando inquérito contra os policiais que torturaram estes infelizes acusados. Poderíamos lembrar a velha lenda e dizer que “ainda existem juízes em Bagdá”. Triste engano, ele já foi cassado e expulso da magistratura. Cometeu a asneira de afirmar que “não estamos mais sob o jugo de Saddam Hussein. Hoje, existe um Código Penal que requer a obtenção de mandados de prisão e a presença de juízes para formalizar as detenções” (Folha de São Paulo 08/11/2004).

    O juiz Al Maliky chegou ao cargo como um exilado dissidente que pensava estar voltando para fazer algo decente. Na dança
    das agremiações políticas de oposição financiadas pelos EE.UU, atreveu-se a investigar acusações de corrupção contra
    o partido que fez a primeira gestão (Congresso Nacional Iraquiano) a serviço da ocupação norte-americana. Teve sorte
    e o governo caiu antes que ele fosse assassinado como já estava previsto. Na reviravolta, foi promovido pelo partido rival (Acordo Nacional Iraquiano), quando, então, ao denunciar centenas de prisões ilegais da polícia iraquiana, teve seu destino selado, sendo remetido à obscuridade. O juiz é um funcionário das classes dominantes e tem como tarefa fazer cumprir as regras da dominação, ou seja, um conjunto de comandos que representam o resultado de uma certa correlação de forças na luta de classes política, econômica e cultural. Para que o magistrado seja operacional, ele precisa estar convencido da ideologia legitimadora do Direito, sendo imbuído da convicção de que aquilo não é a paz imposta pelos vencedores mas, o projeto de paz resultante de um contrato social. O juiz formado nesta ideologia, contudo, pode se tornar uma pedra no sapato das classes dominantes quando a realidade se modifica e as leis se tornam obstáculo às necessidades da dominação.

    Por outro lado, o capitalismo sobrevive sempre revolucionando a si mesmo, razão pela qual, no mundo sempre em mudança estes conflitos entre a lei e os desejos dos dominantes ocorrem, também, em tempos de paz. Por aqui, vemos que a realidade se contrapõe de modo extremo e insistente contra a Constituição, CLT, ECA, LEP, etc, e quando estas ondas de poder se chocam com os tribunais, o resultado não tem sido muito animador. Nos territórios da miséria, o próprio jogo é que causa o principal dano a dezenas de milhões de cidadãos e não a infração às suas regras. A incompreensão deste segredo bem guardado por detrás de trincheiras feitas de alíneas e parágrafos, faz com que a maioria dos magistrados sejam os guardas nos muros que defendem os jardins das classes dominantes. Aí então, por esta ótica, de nada nos adianta que ainda existam juízes, por aqui ou em Berlim.

    João José Sady é Advogado, Mestre em Doutor em Direito pela PUC/SP e Professor Associado Doutor na Universidade de São Francisco, em São Paulo.