Breve balanço das eleições de 2022 para as mulheres: a violência política de gênero venceu!

por | jan 27, 2023 | Geral

Por Gabriela Shizue Soares de Araujo e Marina de Mello Gama no Migalhas

Embora o acesso aos cargos de representação política seja um fator decisivo para a participação, negociação e tomada de decisão nas democracias contemporâneas, lamentavelmente, no Brasil, a maioria da população não se vê espelhada de forma minimamente proporcional nos espaços de poder político: mulheres e pessoas negras são a base do eleitorado, mas a minoria das pessoas eleitas.

O número de mulheres eleitas em 2022, ano em que a conquista do voto feminino completou 90 anos, teve um tímido avanço na disputa para a Câmara dos Deputados e para as Assembleias Estaduais: foram eleitas 91 deputadas federais mulheres – correspondentes a 17,7% da totalidade das 513 cadeiras disponíveis – e 190 deputadas estaduais mulheres, espalhadas entre todos os Estados, atingindo um total aproximado de 18% de deputados estaduais e distritais eleitos em todo país.

Em relação ao comando dos Executivos Estaduais, dentre as 27 unidades federativas do país, as Eleições de 2022 culminaram apenas com 02 mulheres eleitas governadoras: Fátima Bezerra (PT), reeleita para o governo do Estado do Rio Grande do Norte, e Raquel Lyra (PSDB), que assumirá o governo do Estado do Pernambuco.

Nas eleições anteriores, em 2018, haviam sido 77 deputadas federais e 163 deputadas estaduais e distritais eleitas (uma média aproximada de 15% das vagas nos parlamentos nos dois casos), e apenas uma governadora (Fátima Bezerra/PT).

Por outro lado, no Senado Federal houve um retrocesso considerável: se nenhuma suplente assumir, das 81 cadeiras disponíveis, apenas 10 serão ocupadas por mulheres senadoras a partir de 2023, duas a menos que na legislatura anterior.

Malgrado ainda distante do ideal perseguido pela ONU e pelos organismos internacionais de direitos humanos de paridade de gênero na política, e até mesmo muito abaixo da média global de participação feminina nas casas legislativas – 26,4%1, o Brasil tem sido palco, nos últimos anos, de maior pressão da opinião pública, da mídia e da sociedade civil no que se refere às questões de gênero, de enfrentamento ao machismo, ao racismo e a outras formas de discriminação na política.

Muito em função dessa cobrança da sociedade, além das iniciativas contundentes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisões paradigmáticas que impactaram consideravelmente no incremento das cotas de gênero previamente existentes, a legislação também trouxe alguns avanços nos últimos anos, na tentativa de incentivar a participação das consideradas minorias políticas e melhorar a efetivação da representação de gênero e raça nas bancadas.

Vale dizer que a lei2 já prevê há 25 anos reserva de 30% de candidaturas para o Poder Legislativo para as mulheres, que decisões jurisprudenciais sedimentaram cotas proporcionais de financiamento público para mulheres e pessoas negras, além de reserva de espaço em propaganda eleitoral no rádio e na TV3, que há legislação4 estipulando que as secretarias de mulheres de partidos deverão receber 5% de todo o Fundo Partidário ordinariamente para investir em programas de difusão e participação feminina na política, mas ainda assim houve pouco avanço para as mulheres de fato ocuparem os espaços eletivos.

Nesse contexto, digna de nota é a lei 14.192, de 04 de agosto de 2021, que estabeleceu normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, definindo esta como “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher” (artigo 3º). E ainda considera como atos de violência política contra a mulher “qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício dos seus direitos e das suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo”.

Afinal, um dos principais fatores prejudiciais à eleição de mulheres, com efeito, é a violência política de gênero, muitas vezes arraigada nas próprias instituições, como os partidos políticos e as Casas Legislativas. Comportamentos que visam desestimular, impedir ou restringir o acesso das mulheres no espaço da política institucional são comumente protagonizados justamente por seus próprios pares, uma vez que os homens ainda são a esmagadora maioria tanto nas direções partidárias como no parlamento.

Essa qualidade de violência é grave porque ocorre em qualquer espectro ideolo’gico-partida’rio e pode ser física, econômica, psicológica ou simbólica. Como por exemplo, agressões e ameaças contra a integridade física e vida da mulher; ofensas a` sua reputação e honra, incluindo a desqualificação, os questionamentos sobre sua aparência, a violação de sua vida privada, o discurso de ódio e a disseminação de fake news voltadas a estereótipos e padrões comportamentais de gênero.

Tivemos exemplos notórios no passado, como as agressões do então deputado Jair Bolsonaro contra a deputada Maria do Rosário, em que ele afirmou diante das câmeras que não a estupraria por ser muito feia; o feminicídio político da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro; e recentemente, na maior Assembleia Legislativa das Américas, a do Estado de São Paulo, a deputada estadual Isa Penna teve a lateral de seus seios apalpados por um colega, em meio a uma sessão no Plenário.

São casos midiáticos que ganharam maior visibilidade, mas que expressam o que mulheres que buscam um espaço na política vivem frequentemente em todo o país, nas Câmaras Municipais, nas instituições, e especialmente nos partidos políticos: basta notar o quanto as candidaturas laranjas ou fictícias de mulheres ou abandono político são práticas ainda comuns, não obstante todo o enfrentamento da Justiça Eleitoral. E as mulheres negras, as mulheres trans, as mulheres LGBTQIA+, em maior intensidade, considerando a interseccionalidade das opressões vivenciadas em uma sociedade ainda impregnada de preconceito de classe, gênero, raça e sexualidade.

Embora esse fenômeno de violência política tenha crescido de forma geral nas eleições de 2022, fazendo homens e mulheres como vítimas, realizamos aqui o recorte de gênero, para destacar que o impacto para as mulheres que concorrem ao Executivo e Legislativo é tão mais evidente, que nem todos os esforços legislativos e jurisprudenciais até aqui foram suficientes para avançar em termos de representatividade política feminina nos espaços de poder.

A partir de 2023, contudo, a recentíssima Emenda Constitucional 111/21 poderá ter algum efeito no combate à violência política de gênero, pelo menos dentro dos partidos, na medida em que estabeleceu, para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), que os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas de 2022 a 2030 serão contados em dobro.

Trata-se de uma política afirmativa que reverte em financiamento público para os partidos e cujos efeitos práticos serão sentidos a partir de 2023, o que pode estimular os dirigentes partidários a investirem na formação e na eleição de mais mulheres nas próximas eleições.

Assim, os mecanismos já consagrados na legislação há mais de duas décadas têm cumprido importante papel, mas as políticas afirmativas precisam ser aperfeiçoadas e ampliadas para a garantia do alcance da participação de mulheres de maneira paritária, o que implica em vontade política e da sociedade, e talvez em medidas mais concretas, como a reserva de assentos no parlamento, por exemplo, não apenas de candidaturas.

Desigualdade e discriminação, vale dizer, são expressões da violência de gênero que atingem as mulheres sempre que ousam sair de padrões sociais e comportamentais de subalternidade que lhes foram historicamente imputados pelo patriarcado e pela dominação masculina.

O exercício igualitário da cidadania passa necessariamente pela existência de condições efetivas que assegurem a inclusão de candidaturas, a atuação das eleitas e a segurança das mulheres que se dispõem a participar ativamente da arena política. Neste momento histórico, a participação no espaço político institucional e na construção de políticas públicas é urgente e essencial.

1 Dados obtidos Ranking Mundial de Participação Feminina nos Parlamentos Globais, referentes a novembro de 2022, e publicados pela União Interparlamentar.Disponível em :https://data.ipu.org/women-averages?month=11&year=2022&op=Show+averages&form_build_id=form-109MxVSV6RJ8En63d-r76BJ-U-xRJO7ylD3NeffYZwQ&form_id=ipu__women_averages_filter_form

2 Lei nº 9.504/97, Art. 10, §3º: Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais no total de até 100% (cem por cento) do número de lugares a preencher mais 1 (um). (.) § 3o  Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.     

3 Para o financiamento de candidaturas femininas e de pessoas negras os partidos devem destinar os seguintes percentuais do montante recebido do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do Fundo Partidário, bem como para distribuição de tempo no horário eleitoral gratuito no rádio e na TV (STF: ADI nº 5.617/DF, DJE de 3.10.2018, e ADPF- MC nº 738/DF, DJE de 29.10.2020; e TSE: Consulta nº 0600252-18, DJE de 15.8.2018, e Consulta nº 0600306-47, DJE de 5.10.2020): 

I – para as candidaturas femininas o percentual corresponderá à proporção dessas candidaturas em relação a soma das candidaturas masculinas e femininas do partido, não podendo ser inferior a 30% (trinta por cento); 

II – para as candidaturas de pessoas negras o percentual corresponderá à proporção de: a) mulheres negras e não negras do gênero feminino do partido; e b) homens negros e não negros do gênero masculino do partido; e 

III – os percentuais de candidaturas femininas e de pessoas negras será obtido pela razão dessas candidaturas em relação ao total de candidaturas do partido em âmbito nacional. 

4 Lei nº 9.096/95, art. 44, inciso V: “Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados: (.) V – na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e executados pela Secretaria da Mulher ou, a critério da agremiação, por instituto com personalidade jurídica própria presidido pela Secretária da Mulher, em nível nacional, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total;”.

Gabriela Shizue Soares de Araujo é diretora do SASP. Doutora e Mestra em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP). Professora do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da PUC-SP. Autora da obra Mulheres na Política Brasileira: Desafios Rumo à Democracia Paritária Participativa. Advogada.

Marina de Mello Gama: Atualmente secretária adjunta de Assuntos Jurídicos e da Justiça de Cotia/SP, mestre em direito público pela Universidade de Salamanca/Espanha.


ARAUJO, Gabriela Shizue Soares de. MULHERES NA POLÍTICA BRASILEIRA: Desafios rumo à democracia paritária participativa. Arraes Editores. São Paulo, 2022.

MELLO, Luisa e OIKAWA, Erika. Estereótipos de gênero em narrativas falsas: uma análise das fake news envolvendo Manuela D’ávila. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/nacional2019/resumos/R14-0177-1.pdf

PANKE, Luciana. Campanhas eleitorais para mulheres: desafios e tendências. Curitiba: UFPR, 2016. p. 67)

O Globo. ‘Da forma como está posta, a democracia é misógina’, diz autora de livro sobre mulheres na política. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/09/da-forma-como-esta-posta-a-democracia-e-misogina-diz-autora-de-livro-sobre-mulheres-na-politica.ghtml

O combate à violência política de gênero como fortalecimento da democracia. GAMA, Marina de Mello ARIS, Thalita Abdala. 

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