DOS CONFLITOS
No dia 02 de julho de 2020, em plena pandemia da COVID-19, com obrigatório isolamento social, uma desastrada operação policial na pequena comunidade do Moinho, no centro de São Paulo, que dizia ser de combate ao tráfico de drogas, ganhou contornos trágicos. Os policiais invadem casas e barracos, sem mandados, armados com metralhadoras, armas brancas e cães farejadores, logo na primeira casa, um garoto dormia, levanta-se assustado pela invasão e é ferido na mão e braço, um longo corte por faca.
Era final de tarde quando fomos acionados por denúncia de moradores. Então, três membros do Núcleo de Ações Emergenciais da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP (Dras. Luzia Cantal e Juliana Valente e Eu), se dirigiram à comunidade do Moinho. Ao chegarem ao local, perceberam que o clima era de revolta, oito policiais fortemente armados continuavam a invadir as casas, com graves violações, numa casa uma mulher saindo do banho foi exposta por eles, noutra, um garoto cadeirante, foi mordido por um cão farejador.
Um grupo de quase cem jovens se organizaram para partir para o confronto com os policiais. Os três membros da CDH da OAB/SP formaram um cordão de isolamento, negociando com os policiais e com os jovens para evitar uma tragédia ainda maior. A noite chuvosa, parecia mais escura, pela falta de iluminação pública, na estreita viela. Os policiais recuam até a linha do trem que corta a comunidade, esperaram e quando ouviram o aviso de que o trem se aproximava, rapidamente cruzaram os trilhos, nós, no cordão de isolamento, e os jovens, assistimos à fuga, entretanto, quando passa a última composição do trem, uma onda de bombas de gás lacrimogêneo é jogada sobre todos nós.
O recuo da polícia para uma rua acima da comunidade, foi uma tática para que o reforço, as tropas de Choque e BAEP, viessem em socorro e nova incursão policial ocupasse à comunidade. Porém, um intenso trabalho de conversas, pedidos de que se evitasse mais confronto, havia feridos, garotos dispostos a tudo, com ajuda do Ouvidor da Polícia, estabeleceu-se um diálogo, para que a polícia não ocupasse a comunidade.
DOS OBSERVADORES INTITUCIONAIS
Esse foi um dos trabalhos mais simbólicos do Núcleo de Ações Emergenciais e de Direitos Ameaçados, um dos agrupamentos da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, que tinha a função mais dinâmica da CDH, que era acompanhar, dentro do possível, toda e qualquer violência ou violações aos Direitos Humanos que ocorriam no Estado de São Paulo. Assim que se tomava ciência de fatos relevantes e graves que estavam em andamento ou que poderiam acontecer, o núcleo passava a agir.
O núcleo de Ações Emergenciais em parceria com o Sindicato do Advogados de São Paulo (SASP), criou um grupo para acompanhamento de manifestações públicas, atos políticos, culturais e sociais, chamado de Observadores Institucionais, que organizava os Plantões Jurídicos para fazer mediações com o poder público, as autoridades policiais, de trânsito, guarda civil, com o objetivo de evitar violência e violações de direitos, garantido o livre direito de manifestações.
A atuação nas ruas era pautada por planejamento prévio, reuniões para que houvesse uma construção coletiva de nossas responsabilidades, riscos e limites, o cuidado, inclusive, de checar quando cada um chegava em sua casa. Depois de cada evento havia avaliação, relatórios sobre como as intervenções foram feitas
Nos três anos (2019-2021), houve a presença dos Observadores Institucionais em mais de 100 (cem) atividades. Esse grupo esteve nas ruas, nas vielas, nas comunidades, na Cracolândia, entre os mais vulneráveis. Teve em reuniões com a cúpula da Secretária de Segurança, com autoridades municipais, em delegacias, sempre defendendo a legalidade e o respeito aos direitos humanos.
O houve acompanhamento de ações policiais ou seus rescaldos, em Heliópolis, Paraisópolis, Favela do Cimento, Favela do Moinho, Favela San Remo, em ocupações, como da Rio Branco, rua Mauro, nas mobilizações por justiça no Capão Redondo, Jardim São Luís, Peruíbe, Santo André, São Vicente, Suzano, Osasco, Carapicuíba, Barueri, Pico do Jaraguá, Santos, Cidade Dutra, Vila Clara.
DA MEDIAÇÕES DE CONFLITOS
A dinâmica das manifestações de ruas tem quase sempre uma reunião prévia convocada pela Polícia Militar, com os atores envolvidos, quem convoca a manifestação, a PM, a GCM, autoridades de trânsito e de transportes, representantes da prefeitura do local da manifestação. É salutar esse diálogo prévio, deveria inclusive se estender aos casos de reintegração de posse (urbana e rural). Não obstante, essas reuniões se tornam parte de uma prática impositiva, por parte da Polícia Militar e das forças de segurança, que tentam impor limites e horários para as manifestações e regras de condutas, nem sempre previstas em lei.
A PM criou um destacamento de “Mediadores” que usam coletes e seus membros (homens e mulheres) se perfilam nas manifestações para fazer cumprir as resoluções da reunião prévia, ou quando não houve reunião, dizer quais condições são permitidas para que as manifestações ocorram. São Policiais Militares designados para cumprir uma função determinada por seu comando, não negocial ou para ouvir as lideranças de manifestantes.
Na nossa visão a Mediação de Conflitos de ruas, questões de moradia e de terras não poderia ser conduzida pela própria polícia. O uso de “Mediadores” pela PM, é um erro, pois, em última análise é uma imposição de força, eles estão presentes, obedecendo ordem de seus comandantes na operação, o que é óbvio, há uma clara hierarquia e o dever de agir da corporação. Os mediadores não coíbem os eventuais abusos de autoridade, nem mesmo os incidentes típicos de uma manifestação, por exemplo.
A Mediação deve ter credibilidade e confiança por todos os lados envolvidos, principalmente independência e autoridade para que seja ouvida e respeitada, garantido respeito à legalidade, segurança e integridade dos que participam da atividade, tanto manifestantes, quanto policiais.
Nesse sentido, a experiência dos Observadores Institucionais, formado naquele período por advogadas e advogados ligados à Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e ao Sindicato dos Advogados de S. Paulo, formando ainda por profissionais de outras áreas como psicólogos, sociólogos, enfermeiros, professores, nos permite dizer que a Mediação deveria ser uma Política Pública, assim como é a Ouvidoria das Polícias, com previsão legal e funcionamento permanente, seus membros treinados e remunerados de acordo com eventos que participem, nos moldes de como prever o convênio da OAB/SP e Defensoria, por exemplo. Os Mediadores Independentes devem publicar relatórios para a sociedade informando sobre suas atividades e como agiram diante dos conflitos.
O significado da Mediação de Conflitos, independente, é seu alcance social, a pacificação social, o respeito às garantias constitucionais de liberdade de manifestação ou mesmo em situações de conflitos urbanos e rurais, com valorização da segurança pública, evitar violência e violações aos direitos humanos, bem como combater o abuso de autoridade e o desacato, por outro lado. Defende a vida de todos os envolvidos no conflito e diminuiu o uso da força e a letalidade policial.
Arnobio Rocha – Coordenador da CDH do Sindicato dos Advogados de S. Paulo, foi Vice-Presidente da CDH da OAB/SP (outubro a dezembro de 2021) e Coordenador do Núcleo de Ações Emergenciais e de Direitos Ameaçados – gestão 2019-2021)