DECISÃO JUDICIAL DO TRIBUNAL
REGIONAL DE BRASÍLIA REACENDE A ESPERANÇA DE ANULAR A PRIVATIZAÇÃO DA VALE DO RIO DOCE
(Artigo publicado na revista Caros Amigos – fevereiro 2006)
Clair da Flora Martins*
Decisão do Tribunal Regional Federal de Brasília determinou o prosseguimento de Ação Popular de 1997 pedindo a anulação do leilão que resultou na privatização da Companhia Vale do Rio Doce e a retirada da empresa do Programa Nacional de Desestatização, criado durante o Governo FHC. Julgado em 2002 pelo Juízo Federal do Pará, o processo foi extinto sem apreciação do mérito. A decisão do TRF de Brasília abre espaço para discutir judicialmente o pedido dos autores da ação que inclui ainda a reavaliação do patrimônio da empresa – avaliada na época em l0 bilhões de reais, e vendida por 3,3 bilhões (valor correspondente a 45% das ações ordinárias com direito a voto).
A ação, proposta por mim e pelo ex-vereador de Curitiba, Hasiel da Silva Pereira Filho, contra a privatização da então maior empresa estatal brasileira, foi uma das estratégias do movimento REAGE BRASIL, organizado para defender o patrimônio público brasileiro, e que agregou diversos partidos, entidades sindicais e civis e personalidades. O movimento, que teve repercussão nacional, resultou em cerca de outras cem ações propostas em vários estados brasileiros, das quais, 69 tiveram a mesma decisão e foram publicadas no dia l6 de dezembro no Diário da Justiça da União.
Dentre os argumentos da ação questionamos a inserção da CVRD no programa de desestatização, avaliando que a preservação das riquezas nacionais é fundamental para o desenvolvimento econômico e social do Brasil e para a sua soberania. Um dos objetivos desse programa seria a redução da dívida pública. Apesar de termos privatizado 70 por cento das nossas empresas estatais, de termos vendido o patrimônio público arrecadando cerca de 60 bilhões de reais, a dívida pública interna cresceu de 108 bilhões para 654 bilhões de reais entre 1995 e 2002, durante o governo FHC. No mesmo período, a dívida externa cresceu de 148,2 bilhões para 227,6 bilhões de dólares.
Outro ponto questionado refere-se ao preço vil alcançado no leilão da Vale, que foi de 3,3 bilhões de reais. O diretor financeiro da empresa estimou recentemente o seu valor em 40 bilhões de dólares, ou cerca de 100 bilhões de reais. Além disso, o lucro da empresa em 2004 atingiu 6,4 bilhões de reais e o lucro estimado para 2005 é de 12,5 bilhões, ou seja, quase quatro vezes o valor pelo qual a empresa foi vendida.
Esses valores são muito inferiores ao valor real da Companhia Vale do Rio Doce. Estudos independentes realizados na época chegaram a avaliar a empresa em valores que superam 1 trilhão de reais, conforme relembrou o especialista em Energia Bautista Vidal. Mas, para além dessa avaliação puramente monetária, é importante analisar o contexto geopolítico que envolve a disputa dos países hegemônicos carentes de recursos minerais que se concentram no Brasil, na Austrália e na África, afirma Bautista Vidal. No intuito de suprir as suas demandas, essas nações não hesitam em submeter os países detentores desses recursos naturais a constrangimentos e impor estratégias de destruição da soberania das nações, de tal modo a não terem alternativas a não ser abrir mão de suas principais riquezas.
No que tange aos critérios de avaliação da Companhia Vale do Rio Doce, que também são alvo da ação, eles restringiram-se, na época, ao valor das ações da empresa no mercado, sem observar o valor patrimonial do complexo empresarial, e de todos os direitos de lavra de minérios, correspondentes a cerca de 240 mil quilômetros quadrados. De acordo com laudo técnico produzido pela Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ), essa avaliação foi calcada no método de fluxo de caixa descontado, que calcula o valor da empresa com base no fluxo de caixa operacional em determinado período, atualizado por uma taxa de desconto, acrescido dos valores dos ativos não operacionais, mais o valor residual e deduzido o valor da dívida. O método revelou-se lesivo aos cofres públicos, resultando na subavaliação do preço real da empresa.
O laudo técnico da COPPE/UFRJ efetuou também rigorosa análise das projeções de demanda constantes no relatório produzido pela empresa contratada para avaliar a CVRD demonstrando severas críticas contra a sistemática subavaliação dessas demandas. Da mesma forma, a mensuração da capacidade de produção projetada foi subestimada pela empresa avaliadora. No caso do minério de ferro, o laudo da COPPE/UFRJ constata que as reservas das minas de Itabira, Timbopeba e Other MG foram subestimadas em 819 milhões de toneladas.
Os técnicos da COPPE/UFRJ descobriram a existência de documento datado de maio de 1995 em que a própria CVRD informa à Securities and Exchange Comission (SEC), entidade que fiscaliza o mercado acionário nos EUA, que as suas reservas lavráveis medidas e indicadas 1do Sistema Sul, que abrange as regiões acima citadas, eram da ordem de 7.918 bilhões de toneladas, número que, se comparado ao total divulgado no edital de venda da empresa (1,4 bilhão de toneladas) revela uma diferença para baixo de 6.518 bilhões de toneladas. Sobre as Minas de Carajás, pertencentes ao Sistema Norte, o mesmo documento estima as reservas de minério de ferro em 4.970 bilhões de toneladas enquanto o relatório adotado no Edital estima essas reservas em 1,8 bilhão de toneladas o que resulta numa subestimação de 3,170 bilhões de toneladas.
De acordo com o laudo, não foram avaliadas as minas de titânio, minério que o Brasil detém 62% das reservas mundiais, das quais 72% pertencem à Vale do Rio Doce. Não foram avaliadas também as reservas de calcário, dolomito, fostato, estanho/cassiterita, granito, zinco, grafita e nióbio.
A Vale não era uma simples empresa estatal, mas um complexo empresarial, altamente lucrativo, independente do tesouro nacional, envolvendo 54 empresas. Ela é a maior produtora de minério de ferro do planeta, a maior produtora de bauxita da América Latina e a terceira maior mineradora do mundo em diversidade de produtos, além de deter direitos minerários sobre imensas reservas. A decisão do Tribunal resume assim o patrimônio da Vale à época: ” a Vale era a principal exportadora do Brasil (líder no mercado mundial de minério de ferro), maior produtora de alumínio e ouro da América Latina; possuía e operava dois portos de grandes dimensões, a maior frota de navios graneleiros do mundo, além de mil e oitocentos quilômetros de ferrovias brasileiras; possuía reservas comprovadas de 41 bilhões de toneladas de minério de ferro, 994 milhões de toneladas de minério de cobre, 678 milhões de toneladas de bauxita, 67 milhões de toneladas de caulim, 72 milhões de toneladas de manganês, 70 milhões de toneladas de níquel, 122 milhões de toneladas de potássio, 9 milhões de toneladas de zinco, 1,8 milhões de toneladas de urânio, um milhão de toneladas de titânio, 510 mil toneladas de tungstênio, 60 mil toneladas de nióbio e 563 toneladas de ouro. Além disso, dispunha de 580 mil hectares de florestas replantadas, de onde extraía matéria-prima para a produção de 400 mil toneladas/ano de celulose”.
O relatório destaca ainda que “hoje em dia, a Companhia Vale do Rio Doce é um dos mais importantes e produtivos grupos empresariais brasileiros com cerca de 33 mil empregados próprios e é a empresa que mais contribui para o superávit da balança comercial brasileira. É a maior produtora e exportadora mundial de minério de ferro e pelotas e a segunda maior produtora mundial de manganês e ferro liga, com participação de 11% do mercado transoceânico; é uma das produtoras integradas de alumínio (bauxita, alumina e alumínio primário) de menor custo no mundo; é grande produtora de caulim, utilizado para revestimentos de papel, e de potássio, matéria-prima para a indústria de fertilizantes; possui vastos recursos minerais, com amplas reservas de minério de ferro, bauxita, cobre, ouro, caulim, manganês, níquel, potássio e carvão; suas reservas de minério de ferro são suficientes para manter os níveis atuais de produção pelos próximos 30 anos; possui 11% das reservas mundiais de bauxita. É o mais importante investidor do setor de logística no Brasil, sendo responsável por 16% da movimentação de cargas do Brasil, 65% da movimentação portuária de granéis sólidos e cerca de 39% da movimentação do comércio exterior nacional; possui a maior malha ferroviária do país – com 9,30 mil quilômetros – e está implementando o mais moderno programa de renovação da atividade ferroviária brasileira; realiza a navegação costeira, oferecendo o mais completo serviço intermodal do mercado brasileiro. É a maior consumidora de energia elétrica do país, sendo igualmente uma das maiores investidoras; a energia gerada pelas usinas próprias é destinada às unidades operacionais da Vale, o que reduz consideravelmente os custos de produção. É uma empresa global, com atuação nos cinco continentes: Américas, Europa, África, Ásia e Oceania. Possui atividades nos seguintes países: Estados Unidos, Peru, Chile, Argentina, Venezuela, Bélgica, França, Noruega, China, Japão, Banrain, Gabão, Moçambique, Mongólia, Angola, África do Sul e Austrália”.
Não consta ainda, no relatório de avaliação o valor das participações acionárias da CVRD na Açominas, CSN, Usiminas e Companhia Siderúrgica de Tubarão, direito real de uso da propriedade imóvel superficiária do complexo minerário de Carajás e sobretudo a avaliação de bens intangíveis como a tecnologia e o conhecimento técnico-científico acumulado pela empresa por meio da DOCEGEO, empresa integrante do CVRD detentora de um vasto conhecimento geológico fruto de 30 anos de pesquisas e de desenvolvimento tecnológico nesta área.
A privatização da Companhia Vale do Rio Doce esbarra em insconstitucionalidades como a venda de reservas de urânio que têm a sua propriedade restrita à União por se tratar de material radioativo usado em pesquisas nucleares e a cessão da exploração de minérios na faixa de fronteira, que deveria necessariamente ser apreciada pelo Congresso Nacional.
O processo que resultou na venda da Companhia Vale do Rio Doce foi marcado ainda por vantagens excessivas concedidas aos compradores em detrimento do vendedor, o Estado Brasileiro. A Lei 8.030/90 qualifica como moedas admitidas para pagamento das ações no leilão de privatização moedas nacionais, certificados de privatização, créditos e títulos externos, Obrigações do Fundo Nacional de Desenvolvimento (FND), Títulos da Dívida Agrária, Debêntures da Siderbrás, outros créditos contra a União ou entidades por ela controlada direta ou indiretamente, poderiam ser utilizadas nas privatizações. Excluiam-se dessa lista apenas os títulos da dívida externa que sofriam um deságio de 25%. É importante notar que algumas dessas moedas tinham um valor de mercado muito inferior ao valor de face, sendo denominadas de “moedas podres”.
A decisão da Juíza do Tribunal Regional de Brasília obriga o Juízo de Belém a julgar esses e outros pontos questionados na Ação que pede a anulação do leilão, realizando perícia e coleta de provas que demonstrem os diversos vícios apontados no processo e fartamente questionados pela sociedade brasileira à época.
À sociedade cabe a tarefa de se mobilizar e lutar pela manutenção desta decisão, para anular todo o processo viciado da privatização da Companhia Vale do Rio Doce e buscar uma justa e real avaliação deste monumental patrimônio público a fim de obtermos o ressarcimento dos prejuízos ao Estado Brasileiro referentes ao período em que a empresa permaneceu nas mãos do compradores.
*Clair da Flora Martins é deputada federal pelo PT do Paraná e uma das autoras da Ação Popular contra a privatização da Companhia da Vale do Rio Doce