Brasília – Reunidos na X Conferência Nacional de Direitos Humanos, nós defensoras e defensores de direitos humanos, que militamos e lutamos todos os dias em nossas entidades, movimentos sociais e instituições públicas para que sejam respeitados, protegidos, promovidos e garantidos os direitos humanos de todos os povos, mulheres e homens, crianças, jovens e idosos, migrantes, trabalhadores e trabalhadoras rurais, urbanos e domésticos, pessoas com deficiência; nós que lutamos sem parar para que todas as pessoas tenham liberdade para professar sua fé religiosa sem restrição, para que tenham a liberdade de orientação sexual sem qualquer constrangimento; nós que lutamos para que educação de qualidade, saúde acessível e de qualidade, trabalho e renda, dignidade e respeito sejam garantidos a todos, homens e mulheres sem qualquer discriminação e exceção; nós que exigimos a regularização imediata das terras quilombolas e o reconhecimento dos direitos indígenas; nós que queremos um país sem racismo, sexismo e violência, nos unimos para manifestar nossa mais veemente indignação com os assassinatos e o extermínio do qual São Paulo foi vítima por causa da ação do crime organizado que matou dezenas de policiais civis e militares, mortes estas seguidas de execuções sumárias, de jovens pobres e negros da periferia, típicas de grupos de extermínio formados no interior do aparelho de segurança. O massacre de São Paulo é, infelizmente, só uma pequena mostra, hoje a mais aparente, de um problema que atinge a todos e todas e que vem se transformando em uma questão fundamental a ser resolvida se quisermos construir um país verdadeiramente democrático, justo e solidário.
A exclusão social tem sido a marca histórica e permanente do desenvolvimento econômico, político e social do país, na última década a política neoliberal adotada no Brasil tem agravado a preponderância de políticas que não priorizam a justiça social com impacto forte sobre os direitos humanos. Precisamos inverter as prioridades, em vez de aumentar e garantir o lucro dos banqueiros e das transnacionais, precisamos de recursos dirigidos a políticas públicas de educação de qualidade, de segurança pública, garantia de acesso humano e digno à saúde, programas de geração de trabalho e renda, efetivação de uma verdadeira reforma agrária, implementar a demarcação das terras indígenas e quilombolas e respeitar e garantir os direitos dos povos da floresta e de ribeirinhos. A violência é um fenômeno complexo e não se restringe às péssimas condições de vida dos pobres e miseráveis, mas essa condição, em si, já é marca da violência. A mudança nesse quadro exige que se destinem recursos e orçamentos prioritariamente às políticas sociais e para que se tenha também a segurança pública como parte essencial das políticas sociais e de construção da cidadania. Entendendo que os operadores de segurança pública devem ter um salário digno e melhores condições para cumprir sua missão. Precisamos de um outro modelo econômico, uma outra lógica de políticas públicas, queremos uma política de segurança com participação e controle social, que respeite a vida e a dignidade das pessoas livres e dos internos em instituições prisionais.
A efetiva implementação dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, requer a imediata aprovação de uma lei de responsabilidade social que vincule a administração pública a metas de implementação de políticas públicas nessas áreas. Aprovar essa nova lei é criar uma política de Estado que permita avançar de forma sustentável e permanente na redução das desigualdades sociais.
O extermínio de jovens negros, seletivo, dirigido e planejado deve ter fim. Não é possível existir democracia e cidadania com a permanência dessa situação, que é resultado do racismo que se manifesta também na segregação no acesso à educação, ao trabalho, que se exprime também nos salários menores para negros e negras. O Poder Legislativo pode ter um papel importante nesse processo se criar e dar condições de trabalho a uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o extermínio de negros e indígenas. A sociedade civil também tem papel nessa luta, a crítica, a vigilância e a pressão são fundamentais, por isso recomendamos a criação da Rede Nacional de Combate à Violência Letal Juvenil, reunindo organizações não governamentais, movimentos sociais, fóruns e articulações de direitos humanos, de negros e negras afrodescendentes, de mulheres e indígenas, entre outros.
O resgate da dívida histórica com os afrodescententes originada com a escravidão e a superação do racismo e da desigualdade racial deve ser uma prioridade do Estado e da sociedade que será reforçado com a aprovação do Estatuto da Igualdade e a criação do Fundo Nacional para a Igualdade Racial, com o objetivo de financiar políticas, programas e projetos visando a reparar a histórica dívida histórica e promover a igualdade racial.
A violência de gênero doméstica e intrafamiliar contra as mulheres constitui uma grave forma de violação dos direitos humanos, portanto recomendamos a aprovação imediata do projeto de lei da Câmara dos Deputados 37/2006 que representa a tentativa de criação de mecanismos efetivos para coibir a violência contra as mulheres.
O racismo também atinge os indígenas, que continuam a sofrer violência exacerbada e ainda são vítimas de massacre e vivem sob a ameaça de extinção de vários povos. Denunciamos a violência contra indígenas, a criminalização das lideranças e dos movimentos indigenistas e reinvindicamos que seja criada rapidamente, pela Presidência da República, uma Secretaria de Política Indigenista, nos moldes das secretarias de Direitos Humanos, de Igualdade Racial e de Políticas para as Mulheres e que se construa, de forma participativa e democrática, uma política indigenista que tenha por primazia o respeito aos direitos humanos.
Denunciamos o processo de esterilização imposto às mulheres indígenas. Reivindicamos da Divisão de Saúde da Mulher, do Ministério da Saúde, especial atenção com políticas específicas para proteger e garantir o exercício dos direitos reprodutivos das mulheres indígenas.
Recomendamos a aprovação do Projeto de Lei da Câmara 1151/1995, que disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
Recomendamos que o Programa Brasil Sem Homofobia, programa este atualmente com ações interministeriais seja tornado um Plano Nacional com fundo próprio a fim de promover ações de desconstrução do preconceito por orientação sexual e identidade de gênero.
Há 16 anos, o povo brasileiro conquistou um novo marco legal e político de priorização da infância e juventude, como determina nossa Constituição. As crianças e adolescentes têm de ser nossa prioridade absoluta. O Estatuto da Criança e do Adolescente determina e dá os critérios para o tratamento de adolescentes em conflito com a lei. O que exigimos é o respeito à lei, ao Estatuto da Criança e do Adolescente, com a extinção dos atuais internatos-prisões e sua substituição por instituições verdadeiramente sócioeducativas e a priorização de projetos em meio aberto de liberdade assistida e de prestação de serviços à comunidade. É fundamental a criação de programas de proteção da criança e adolescentes ameaçados de morte, bem como o país deve cumprir as decisões dos organismos internacionais relacionadas à vida e à integridade física dos adolescentes internados.
A violência sexual contra crianças e adolescentes contitui uma das mais cruéis formas de violação dos direitos humanos. É preciso efetivar políticas públicas de prevenção e enfrentamento dessa realidade no sentido de garantir os direitos desse segmento infanto-juvenil.
É critério de justiça e respeito aos direitos humanos o acesso pleno à saúde. Especificamente em relação aos portadores de sofrimento mental, o Ministério da Saúde deve instituir mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios e para o efetivo cumprimento da reforma psiquiátrica. É necessário ampliar o acesso, sem que implique na interdição judicial dos Benefícios de Prestação Continuada, é imperativo garantir o acesso gratuito ao tratamento necessário, inclusive os de alto custo e é essencial que se garanta que as pessoas portadoras de transtornos mentais, que cometam delitos e são consideradas inimputáveis, sejam tratadas com as mesmas condições definidas na reforma psiquiátrica, ou seja, nos hospitais gerais e serviços substitutivos.
Os presídios não devem ser lugar onde a sociedade se vinga de pessoas que cometeram algum delito, dos mais brandos e ligados à condição de necessidade aos mais graves, aos crimes contra a vida. Não se trata de vingança, se trata de justiça. Devemos manter constante vigília da sociedade civil para que as garantias previstas na Lei de Execuções Penais e na Constituição Federal sejam efetivadas em relação às especificidades da mulher presa, como também aos presos e egressos. Manifestamos especial recomendação para a ampliação da aplicação de penas e medidas alternativas.
Precisamos de uma política de direitos humanos, ao mesmo tempo clara, publicizada, abrangente, permanente e possível de ser monitorada, com metas e prazos para serem cumpridos e respeitados. É necessário promover a atualização do Programa Nacional de Direitos Humanos, com ampla participação da sociedade. O novo posicionamento do Estado e da sociedade deve incorporar desde os instrumentos legais para a responsabilização dos estados brasileiros nos casos em que a União for condenada por violação aos direitos humanos em instâncias internacionais, além de promover a ampliação de espaços de justiciabilidade internacional dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhescas), e reforçando ações que garantam a divulgação e a informação a todos os órgãos e instituições do Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público para o conhecimento e apropriação das decisões e acordos internacionais e das recomendações do sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
Reafirmamos nosso compromisso com a política de desarmamento como instrumento efetivo de diminuição dos índices de criminalidade e violência, que deve ser reforçada com uma profunda alteração nas políticas mantidas com base na letalidade e na violência da ação dos aparelhos de segurança.
A institucionalidade dos direitos humanos requer a criação e o fortalecimento de conselhos de direitos humanos, no âmbito federal, estadual e municipal, bem como de ouvidorias, com funções deliberativas e vinculantes, instituições democráticas, com participação da sociedade civil, com composição no mínimo paritária, com orçamento e estruturas adequadas. Os conselhos devem ter função e responsabilidade de monitoramento, avaliação e formulação de políticas públicas de direitos humanos. Devem ser espaços de controle social, participação e construção dos direitos humanos.
Recomendamos a aprovação imediata do projeto de lei que cria o Conselho Nacional de Direitos Humanos. Destacando, porém, que o Conselho Nacional deve ser composto com maioria de membros representantes da sociedade civil, com orçamento próprio e atuação autônoma.
A educação é terreno próprio e fecundo para a promoção e irradiação da cultura dos direitos humanos, por isso é importante a promoção da educação em direitos humanos desde a educação infantil até a universidade, abrangendo educação formal e não-formal, considerando todos os recortes de diversidade de religião, raça, etnia, gênero, orientação sexual, deficiência e geração, com focos na formação de professores e professoras, com salários e condições de trabalho dignos, contemplando a transversalidade das temáticas e especificidade do processo pedagógico.
É preciso garantir a defesa e promoção do direito humano à comunicação, cuja importância está ligada à construção de identidades e subjetividades, bem como à conformação das relações de poder. Sua realização passa pela garantia de meios e de condições para que os diversos segmentos da população possam ouvir, falar e ser ouvidos. Por isso é preciso reconhecer o direito humano à comunicação na construção da política nacional de direitos humanos. Também é preciso reforçar a adoção de medidas administrativas, legislativas e judiciais, que visem a prevenir, coibir e punir o uso indevido da internet e de outros meios de comunicação para a prática de crimes contra os direitos humanos.
Construir um país democrático pressupõe o resgate de nossa história, especialmente o conhecimento, reconhecimento e reconstituição do período recente da ditadura militar. Memória e verdade são condições necessárias para a permanência da democracia. Justiça e verdade são condições necessárias para o resgate histórico da resistência do povo brasileiro contra a ditadura militar, com o julgamento e punição dos torturadores a exemplo do que já vem sendo feito em outros países da América do Sul, como Argentina e Chile. A abertura dos arquivos da ditadura já tarda. E deve ser complementada com o respeito ao direito daquelas pessoas que ainda não tiveram seus processos de anistia analisados e daquelas cuja anistia ainda não foi completamente implementada.
Manifestamos nosso apoio ao Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa, aumentando a participação da sociedade civil, do Poder Legislativo e do Poder Judiciário nos processos de elaboração, monitoramento e avaliação da política externa brasileira, que juntamente com o Poder Executivo deverão assegurar que seja respeitado o princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos.
Vivemos um momento importante e delicado hoje no Brasil. Os defensores e defensoras de direitos humanos somos vítimas do rancor e da ação política retrógrada, anti-humana e antidemocrática do ressurgimento de forças ultra-conservadoras que se aproveitam do sentimento de insegurança da população para criminalizar as pessoas e movimentos que defendem que a segurança pública seja um direito democrático e cidadão de todos e todas, que a segurança esteja integrada e relacionada com políticas de respeito e garantia dos direitos humanos, como educação, saúde, acesso à terra e ao trabalho, liberdade e justiça. Deixar que vença o conservadorismo é fazer o Brasil retroceder na construção da democracia, é fazer vencer o racismo, a homofobia, a injustiça, o fundamentalismo.
A valorização e o reconhecimento do papel dos defensores e defensoras dos direitos humanos é condição essencial para o avanço da democracia e da cidadania no Brasil. Temos consciência de nossa responsabilidade, vamos continuar nossa luta!
Reafirmamos como Fernando Pessoa:
“Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena!”
Plenário da X Conferência Nacional de Direitos Humanos, auditório Nereu Ramos, Câmara dos Deputados, 2 de junho de 2006.
Fonte: Agência Câmara