Novas formas de emprego não
podem suprimir direitos
por Maurício Cardoso e Adriana Aguiar
A ampliação das competências da Justiça do Trabalho estabelecida pela Emenda Constitucional 45 nada mais é do que o reflexo da nova realidade nas relações de trabalho e tem com função principal possibilitar o acesso dos trabalhadores informais à Justiça Trabalhista. A opinião é do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Vantuil Abdala que acredita que em conseqüência da reforma, há uma demanda reprimida de trabalhadores autônomos que ainda não perceberam que podem recorrer à Justiça do Trabalho.
A nova realidade clama também por reformas da CLT e pela regulamentação de novas formas de relação de trabalho como a terceirização, as cooperativas de trabalho e as sociedades por cotas. “Todas estas alterações são oportunas e necessárias, desde que não implique supressão de direitos dos trabalhadores”, diz o presidente do TST, que conversou com a Consultor Jurídico em sua passagem por São Paulo, por ocasião da abertura do ano judiciário trabalhista.
Vantuil Abdala se formou e fez doutorado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi professor da Faculdade de Direito de Sete Lagoas (MG) e da PUC-SP. Ingressou na magistratura em 1973. Foi vice-presidente do TST de 2002 à 2004, quando se tornou presidente da Corte.
ConJur – O que mudou na Justiça do Trabalho com os dispositivos da Emenda 45 que ampliaram a sua competência?
Vantuil Abdala – A ampliação da competência da Justiça do Trabalho nada mais é que um reflexo de uma nova realidade no mundo do trabalho. Essa nova realidade está acontecendo no mundo inteiro e altera o perfil da relação de trabalho. Hoje não temos exclusivamente aquela fórmula antiga da relação de emprego, com o trabalho subordinado, assalariado e com horário. A tecnologia impõe novas circunstâncias e condições de trabalho, como o tele-trabalho, em que o trabalhador exerce a atividade longe dos olhos do empregador. O próprio fenômeno da terceirização afasta o trabalhador dos olhos diretos do tomador de serviço. Por outro lado, é preciso que os 50% de trabalhadores brasileiros que estão no mercado informal tenham acesso ao Judiciário para reclamar seus direitos, já que também são empregados. Apenas não estão sendo considerados como tais pelos empregadores. Esses empregadores, que burlam os direitos dos trabalhadores, fazem uma concorrência desleal com o bom empregador. É um mau exemplo. Por isso, é muito importante que esse trabalhador cham ado entre aspas de autônomo tenha acesso à Justiça do Trabalho.
ConJur – Quais foram as outras matérias em que o reconhecimento da competência da Justiça do Trabalho faz a diferença?
Vantuil Abdala – A Justiça do Trabalho também passou a julgar os litígios intersindicais, julgados até então pela Justiça comum que não tinha nenhuma proximidade com o assunto. Por isso, esses casos se eternizavam na Justiça, o que prejudicava os trabalhadores. A transferência desta lide para a Justiça do Trabalho tem razão de ser, porque faz parte do dia a dia do juiz do trabalho conhecer quem deve pertencer a determinada categoria de trabalhadores.
ConJur – Casos envolvendo servidores públicos também deveriam ser julgados pela Justiça Trabalhista?
Vantuil Abdala – O Tribunal Superior do Trabalho não vai pleitear essa competência para a Justiça do Trabalho, mesmo com a consciência de que muitas associações de classe, principalmente de juízes de primeiro grau lutaram nesse sentido. Mas essas entidades esquecem que não seria só julgar as ações dos servidores públicos federais contra a União. Se fosse isto até que seria razoável. Mas julgar os casos que envolvem o servidor público estadual e o servidor público municipal implica no conhecimento de muitas legislaçõ es diferentes, já que cada unidade administrativa no Brasil inteiro tem um estatuto do servidor próprio. A Justiça do Trabalho não teria condições de julgar. Por isso, nós deixamos correr o debate apesar de não achar que transferir esta competência é o mais apropriado.
ConJur -Essa nova realidade das relações de trabalho não implicaria também em uma reforma da Consolidação das Leis do Trabalho?
Vantuil Abdala – Eu penso que há muita coisa na CLT que precisa ser atualizada sem que implique retirar direitos dos trabalhadores. Por exemplo, a nossa legislação sobre insalubridade, periculosidade, foi feita há 20, 25 anos. Fizeram uma legislação como se o Brasil fosse a Suécia ou a Suíça. Algo belíssimo teoricamente, mas que na prática brasileira não funciona. As exigências são absurdas, estapafúrdias. Por exemplo, a lei estabelece que no canteiro de obras tem que ter chuveiro quente. Então, chega um fiscal em Manaus e aplica uma multa, porque o chuveiro era frio. Não importa que na faça quarenta graus. na cidade. Outro dispositivo da CLT que precisaria ser revisto é a permissão de que sejam feitas horas extras permanentes, o que é uma falha grave. A hora extra contínua passa a ser horário normal de trabalho, quando deveria ser usada apenas para situações extraordinárias. Se a hora extra é aceita em caráter permanente, isso diminui o mercado de trabalho e aumenta o risco de acidentes por causa das jornadas alongadas. Isso é um abuso. Há trabalhador com jornada de 11 horas, 12 horas, o que traz malefícios para ele. Por isso a legislação do trabalho, de fato, precisa de um aperfeiçoamento.
ConJur – Além do trabalho informal, hoje existem várias modalidades de prestação de trabalho como as cooperativas de trabalho, as sociedad es por quota e a terceirização. Como o senhor vê o emprego desse tipo de artifício para enfrentar os rigores da CLT?
Vantuil Abdala – É preciso regulamentar essas novas formas de relação de trabalho. Não podemos impedir que elas existam mas podemos evitar que se transformem em focos de abuso. Por exemplo, não temos uma lei sobre cooperativa de serviços, só temos uma lei geral de cooperativas. Tanto que a cooperativa de serviço ainda é fiscalizada pelo Incra [o Incra que existia como um instituto autônomo desde 1989, foi incorporado em 1996 ao atual Ministério de Desenvolvimento Agrário], que nem existe mais, o que significa que não tem nenhuma fiscalização. No caso da terceirização é a mesma coisa, só existe uma súmula do Tribunal Superior do Trabalho sobre o assunto, que já tem mais de 12 anos. Não há uma única lei sobre terceirização no país. O setor público tem usado e abusado da terceirização para burlar a obrigação do concurso público, o que é um foco de abuso e de corrupção. A terceirização também tem sido bastante usada por maus empregadores para burlar o direito dos trabalhadores. Por isso precisamos validar todas essas relações de trabalho para regulamentar.
ConJur – Como o senhor avalia o primeiro ano da vigência da Emenda Constitucional 45 para a Justiça do Trabalho? Muitos processos foram repassados para a Justiça Trabalhista?
Vantuil Abdala – É muito pouco tempo para se ter uma avaliação mais exata. O Judiciário brasileiro não tinha uma identificação clara de quais causas deveriam ser encaminhadas para a Justiça Trabalhista. Por isso, cada órgão do Poder Judiciário está enviando para a Justiça do Trabalho os processos em dose homeopáti ca. Isso teve um lado positivo, já que deu tempo para a Justiça do Trabalho se adaptar e se preparar. Até agora o Superior Tribunal de Justiça enviou ao TST cerca de 450 Recursos Especiais. Esses recursos encaminhados serão julgados como Recursos de Revista, mas serão respeitados os princípios do Recurso Especial para que a parte não tenha prejuízo. Da Justiça Estadual, o TST recebeu cerca de 150 processos em que se discute, principalmente, a representação sindical. Em primeiro grau ainda não deu para sentir quantas ações novas serão recebidas, já que o trabalhador autônomo em geral deve começar a entrar de modo significativo na Justiça Trabalhista. Talvez o trabalhador autônomo ainda não tenha percebido esta nova realidade em que ele pode reclamar pelos seus direitos na Justiça do Trabalho.
ConJur – A Justiça do Trabalho terá condições de atender à demanda desses trabalhadores autônomos?
Vantuil Abdala – Creio que sim. E em melhores condições que os outros ramos do Judiciário. Tradicionalmente a Justiça do Trabalho é muito mais célere em comparação aos outros ramos. E esse caráter de celeridade deve ser cada vez mais aperfeiçoad o. A Justiça Trabalhista está adotando uma série de medidas para que haja uma celeridade ainda maior para atender essas novas demandas.
ConJur – Quais medidas são essas?
Vantuil Abdala – Há um projeto de lei para que o processo sumaríssimo passe a julgar ações de até 60 salários mínimos. Hoje são julgadas ações de até 40 salários mínimos. Isto daria ainda mais celeridade porque os processos de rito sumaríssimo têm sido liquidados no prazo máximo de três meses. E mais do que isso, é impressionante o número de acordos que se dá no processo de rito sumaríssimo. Mais de 80% dos processos terminam em acordo. Porque o empregador sabe que se não fizer acordo, não vai conseguir protelar a dívida por muito tempo. Então, ele prefere pagar logo a ter de pagar mais em pouco tempo. Em média, 45% dos processos no Brasil são de rito sumaríssimo. O estado que tem a menor porcentagem de processos sumaríssimos é São Paulo, com 28% das ações. Essas ações de pequeno valor são exatamente as dos trabalhadores mais pobres. São os trabalhadores que mais necessitam receber os seus direitos, porque esse dinheiro que é devido é praticamente a sua sobrevivência.
ConJur – E com relação ao número de processos? Quais são as medidas tomadas para diminuir isso?
Vantuil Abdala – Tem um outro pro jeto de lei na Câmara que pretende aumentar os juros na Justiça do Trabalho de 1% como é atualmente por força de lei, para o equivalente à taxa Selic, que hoje é em torno de 2%. Em todos os outros ramos do Judiciário os juros são equivalentes à taxa Selic. A Justiça do Trabalho tem os menores juros do Poder Judiciário. Isto é um absurdo, um despropósito. E o aumento desses juros vai desestimular o número de recursos. Também tem um Projeto de Emenda Constitucional da Reforma do Judiciário que retornou do Senado para a Câmara, que propõe aplicação de multa se houver o descumprimento consciente do empregador de pagar obrigação trabalhista. A aplicação de multa pode desestimular a postura do empregador que descumpre obrigação trabalhista, fazendo com que o trabalhador vá a juízo para depois pagar o direito devido.
ConJur – De que modo a proposta pode diminuir a quantidade de ações de trabalhadores que entram na Justiça para obter o pagamento de direitos devidos?
Vantuil Abdala – Nós já estávamos chegando em uma situação absurda. Antigamente, o empregado ameaçava o empregador que não cumpria obrigação de que iria reclamar pelos seus direitos na Justiça. Então o empregador passou a dizer para o trabalhador aceitar o que ele oferece, o que normalmente era um valor vil, muito inferior. O trabalhador acabava aceitando ao avaliar que, se ajuizasse uma ação o dinheiro devido demoraria quatro, cinco anos para chegar às suas mãos. O funcionário, que precisa do dinheiro, aceitava o acordo do patrão. Tínhamos que mudar essa situação. Estamos adotando essas medidas para atender a esta grande responsabilidade que o Parlamento atribuiu à Justiça do Trabalho, que é levar à sociedade trabalhadora, de um modo geral, o reconhecimento dos seus direitos.
ConJur – Uma das críticas em relação à Justiça do Trabalho está nos valores discrepantes estipulados como indenização por dano moral. O senhor pretende fazer alguma coisa em relação a isso?
Vantuil Abdala – Esses valores discrepantes não são um problema apenas da Justiça do Trabalho. As discrepâncias também acontecem na Justiça comum e na Justiça Federal. O Superior Tribunal de Justiça tem exercido um poder moderador nessas ações. O Tribunal tem recebido os Recursos Especiais, cabíveis em circunstancias especiais e violaç ão direta à lei ou de conflito da jurisprudência, para decidir sobre os valores absurdos estipulados em indenização por dano moral. O Tribunal Superior do Trabalho também pretende agir como um poder moderador exatamente para a permanência do instituto na Justiça Trabalhista. A possibilidade de indenização por dano moral nas relações de trabalho é tão importante que nós não podemos desmoralizá-la. A indenização por dano moral é uma forma de combate ao trabalho vil, degradante, análogo à condição de escravo, à exploração do trabalho infantil, à discriminação do trabalho do deficiente físico e da mulher.
ConJur – Outra crítica com relação à Justiça Trabalhista está no uso da penhora online que tem causado confusões como a inviabilidade do trabalho da empresa. Como o TST vê essa questão da falta de limites para a penhora online?
Vantuil Abdala – É preciso deixar bem claro que esses problemas da penhora não foram criados com a penhora online, porque mesmo com a penhora em dinheiro o juiz podia cometer impropriedades. O Tribunal Superior do Trabalho tem recomendado aos juízes cautela, bom senso e prudência no uso da penhora online pelo mesmo motivo que nós nos colocamos contra o abuso da indenização por dano moral. A penhora online é de extrema importância para a efetividade do direito do trabalhador e não pode ser usada imoderadamente. Mas o número de reclamações por uso indevido da penhora online caiu nos últimos tempos.
ConJur – Segundo os números da Justiça, divulgados pela pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, o índice de recorribilidade da Justiça do Trabalho é o mais alto do Judiciário. Na primeira instancia chega a 74%, na segunda instancia é de 40%. A que se deve isso?
Vantuil Abdala – Se recorre muito de primeiro para segundo grau porque é barato. É mais vantagem para o empregador não pagar do que pagar. Se o empregador pegar um empréstimo no mercado, ele vai pagar 4%, 5% de juros. É muito mais vantagem não pegar um empréstimo e deixar a ação correr na Justiça. Não há uma multa por não pagar e os juros são baratos na Justiça do Trabalho. Essas medidas que nós temos sugerido servem para evitar que esses maus empregadores se beneficiem do processo na Justiça do Trabalho. Esse prolongamento da ação causa dificuldade para o trabalhador, aum enta o custo para a Justiça do Trabalho e não interessa a ninguém na sociedade, a não ser a esses maus empregadores. Em relação aos recursos dos Tribunais Regionais para o Tribunal Superior do Trabalho, o índice de recorribilidade é de 5% a 7% variando de um ano para o outro, o que não é um número grande. Recebemos cerca de 120 mil, 130 mil recursos por ano no Tribunal Superior do Trabalho. Não é um número alto se compararmos com o número de ações ajuizadas na Justiça Trabalhista por ano, que está em torno de 1,7 milhões, 1,8 milhões.
Revista Consultor Jurídico, 19 de março de 2006