Uma vez, Pelé afirmou que “brasileiro não sabe votar”. A grande mídia e o TSE parecem estar falando o mesmo, agora. Mostram a corrupção do sistema de que fazem parte, mas culpam o povo.
Pelé ficou famoso por sua genialidade com as bolas nos pés. E quase tão famoso pela infelicidade de suas declarações. Talvez, a mais famosa delas tenha sido a frase: “brasileiro não sabe votar”. Foi dita nos anos 70, ao ser questionado sobre a decisão dos governos militares de suspender eleições diretas para cargos do Executivo.
Quase 40 anos depois, a mídia e a Justiça Eleitoral parecem estar falando o mesmo. É que nos últimos meses, não faltam lições de moral dadas por locutores, comentaristas, âncoras de jornal, especialistas disso e daquilo, em matérias, artigos e anúncios. Todas praticamente acusando os eleitores e eleitoras de esquecerem em quem votaram. De não acompanharem a atuação daqueles que elegeram. Enfim, parecem culpá-los pelo comportamento dos mensaleiros, sanguessugas e outros mafiosos engravatados que chegaram ao Congresso Nacional.
Numa propaganda do TSE, por exemplo, um professor de meia idade dá uma bronca em idosos numa sala-de-aula. Acusa-os de esquecer em quem votaram, de não acompanhar etc etc. Comentaristas e apresentadores da imprensa escrita e falada fazem o mesmo com quem os ouve ou assiste. O “Fantástico” até criou um quadro chamado “E eu com isso?”. Nele, uma atriz interpreta uma mulher do povo, que não quer saber nada de política. Enquanto lava a roupa, faz compras, se desloca em trens lotados para o trabalho, ela reafirma o tempo todo que política não leva a nada. Ao mesmo tempo, o quadro vai tentando explicar o funcionamento do Congresso, governos, partidos, etc. A atriz se sai muito bem interpretando alguém que mal tem tempo de dormir, quanto mais acompanhar mandatos e leis. Mas, não deixa de haver preconceito aí. Afinal, não são apenas os pobres que dão pouca atenção às atividades de vereadores, deputados, senadores, governantes em geral.
O cientista político Alberto Carlos Almeida, da FGV, demonstra isso em seu livro “Reforma Política: Lições da História Recente”. A publicação revela que 71% dos eleitores esqueceram em quem votaram para deputado federal quatro anos antes. É verdade que a chamada “amnésia eleitoral” é maior entre os de menor escolaridade. Mas, 53% das pessoas com nível superior também não se lembram de seu voto.
Interessante que o próprio quadro do “Fantástico” dá elementos para entender por que o eleitorado esquece ou despreza a política dos gabinetes. A atriz que encarna a mulher do povo conversa sobre a necessidade de fiscalizar os parlamentares e governantes com pessoas da população. Estas, dizem coisas óbvias, como: “Eu lá tenho tempo de ir atrás de vereador” ou “Tenho coisa melhor pra fazer”. Ora, a primeira observação diz respeito a pessoas em busca de sua sobrevivência, o que lhes toma grande parte do tempo e das energias. A segunda, se refere exatamente ao que a grande mídia faz com a maioria da população, não apenas com os mais pobres. Oferece-lhes entretenimento fácil e barato e informação simplificada e desestimulante. De um lado, canais como a TV Senado ou TV Câmara só chegam a quem paga tevê a cabo. De outro lado, quem é que vai trocar filmes, novelas, desenhos animados e outras atrações por discursos longos e chatos? No máximo, assistem aos “jornais das oito”, com seu formato cada vez mais espetaculoso e menos explicativo.
Além disso tudo, ainda tem o fato de que essa mesma mídia é a grande advogada do individualismo. É a primeira a desestimular a organização da população. Também não vacila na hora de chamar partidos e organizações populares de “atrasados”, “radicais”, “extremistas”. Quer mesmo é que a fiscalização se limite ao voto individual, escondido na cabine de votação, uma vez a cada 2 ou 3 anos. Manifestações em frente aos parlamentos e palácios, nem pensar. Aí, é baderna. Partidos de esquerda que organizam o povo? Cláusula de barreira neles. Enquanto isso, o grande partido dos monopólios das imagens e do som continua fazendo e desfazendo, sem eleições e mandato para isso. Sem falar nos 30% de parlamentares que representam seus interesses no Congresso Nacional.
Ora, toda essa estória de “fique de olho em seu deputado” não passa de um jeito de colocar a culpa no povo e deixar em paz o próprio sistema. Este sim, cria os quase sempre esquecidos corruptos públicos e os nunca lembrados corruptores privados. E quando surgirem novos escândalos, as palavras de Pelé serão novamente lembradas, ainda que não ditas. Por outro lado, toda essa conversa moralista serve para esconder que parlamentares e governantes não traem a vontade popular apenas roubando. Na verdade, a maior parte nem é corrupta. Somente propõe e aceita leis que pioram a vida da grande maioria da população.
Adaptando uma frase irônica que Brecht disse uma vez: Não seria mais fácil o governo e a mídia derrubarem o povo e elegerem um outro?