Por Vanilda Honória dos Santos¹ no Migalhas
A recente publicação do Acórdão referente à Apelação Cível nº. 0002021-46.2016.8.19.0207 pela Décima Quarta Câmara Cível do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, de relatoria do Desembargador Francisco de Assis Pessanha Filho, lançou novas fagulhas no debate público acerca de casos que versam sobre matéria de ofensas aos direitos da personalidade em decorrência de comentários racistas, a injúria racial[1]. O referido Acórdão trata de Apelação Cível de ação indenizatória por danos extrapatrimoniais em virtude de comentário racista e depreciativo proferido pela ré, a empresária e apresentadora de televisão conhecida por Val Marchiori, a respeito da cantora Ludmila em uma emissora de televisão.
Cabe ressaltar que não se pretende aqui analisar o caso mencionado, considerando os aspectos técnico-jurídicos. Ele apenas serve de ponte de acesso à discussão sobre um tema muito relevante para a sociedade e o Estado Democrático de Direito, ou seja, em relação ao teor do conteúdo da fala da ré, cujas ofensas contemplam a expressão proferida contra a autora Ludmila ao dizer que o seu cabelo parecia “bombril”. É importante mencionar que a conclusão do Acórdão é de que a fala não foi considerada ofensiva, pois se dirigia ao “aplique” ou à “peruca” e não ao cabelo da autora. Esse ponto é a chave de acesso a outro caso, ao qual esta reflexão se dedica.
Trata-se da ação civil pública movida por entidades do Movimento Negro contra a Sony Music, que iniciou com quatro entidades do Movimento Negro: CEAP, IPCN, CRIOLA e IPEAFRO e contou com advogados como o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa e Humberto Adami, diretor do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental IARA/RJ. A ação se deu em função da música do artista conhecido como Tiririca, cujo título é Veja os cabelos dela[2]. A música era extremamente ofensiva às mulheres, cujo conteúdo pode ser verificado no seguinte trecho:
Parece bom-bril, de ariá panela
Parece bom-bril, de ariá panela
Quando ela passa, me chama atenção
Mas os seus cabelos, não tem jeito não
A sua caatinga quase me desmaiou
Olha eu não aguento, é grande o seu fedor
Veja veja veja veja veja os cabelos dela
Veja veja veja veja veja os cabelos dela
Veja veja veja veja veja os cabelos dela
A música causou grande repercussão entre as pessoas negras, sobretudo as mulheres e meninas negras, devido ao seu conteúdo racista e ofensivo. Neste caso, as ofensas não se dirigiam a uma pessoa específica, mas entendida como a toda uma raça, e não se restringia a ofensas aos cabelos, mas se refere explicitamente os cabelos como “bombril”. Portanto, tratava-se de um caso de racismo[3], embora a empresa tenha negado durante todo o processo.
Por que retomar este caso? Primeiro, porque faz parte da história do direito brasileiro, uma vez que se trata de um caso paradigmático que versa sobre direitos humanos e fundamentais, que levou ao banco dos réus uma grande empresa internacional por praticar o racismo por meio dos conteúdos da música de um de seus artistas. O caso tornou-se referência para ações nos EUA. Segundo, porque as discussões sobre o racismo ganhavam fôlego no espaço público daquele período histórico, primeiros anos do século XXI. Até então, o termo “racismo” parecia estar proibido de circular, o que certamente é consequência do “mito da democracia racial” e da equiparação dos movimentos de luta contra o racismo a “grupos terroristas”, antes da abertura democrática e da Constituição da República de 1988.
A sentença de 1º Grau, de fls. 829/839 julgou improcedente o pedido, entendendo não existir racismo na letra da música. Afirma a sentença:
No mérito, este juízo não entende que a música composta pelo cantor Tiririca tenha violado a Lei nº 7.716/89 pela prática da afirmada discriminação ou preconceito de raça. Não há na sua letra ofensa à mulher
negra como desejam os autores fazer crer. A melhor interpretação que se extrai do fato é a que a Ré explicitou em sua defesa, analisando a palavra ‘nega’, que às vezes pode se entender como corruptela de ‘negra’, como forma jocosa de se tratar alguém ou até carinhosa, sendo relevante assinalar que este julgador tem em sua família uma cunhada de pelo menos quarenta e seis (46) anos de conhecimento e amizade, que é amorosamente tratada de
‘neguina’, diminutivo de ‘nega’, se existente tal vocábulo com o sentido que se pretende dar, muito embora distante daquele que os autores entendem pois ele não se refere a uma pessoa ‘negra’.(…) Isto posto, julgo improcendente
o pedido dos autores, deixando de condená-los ao pagamento das custas e da Taxa Judiciária, nos termos do art. 18 da Lei 7.347/85[4].
Houve recurso, cujo teor do Acórdão é o seguinte:
16ª Câmara Cível – TJ/RJ
Apelação Cível n. 16893/2002 – 33a Vara Cível da Capital
Apelantes: l) CEAP-CENTRO DE ARTICULAÇÃO
DAS POPULAÇÕES MARGINALIZADA
2) CRIOLA
Apelado: SONY MUSIC ENTERTAINMENT
(BRASIL) INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA.
Relator: Desembargador Mário Robert Mannheimer
Classificação Regimental:
Analisando a letra, verifica-se, data vênia ao eminente prolator da sentença recorrida, que, embora a expressão “nega” possa realmente ser utilizada popularmente dentro de um contexto afetivo, sem qualquer conotação racial, no presente texto, a combinação de tal expressão com a alusão a cabelos característicos da raça negra, que são pejorativamente comparados a “bombril de ariar panela”, seguidos de referências ao “fedor da nega”, comparado a um gambá, caracteriza a ofensa indiscriminada às mulheres da etnia negra, descritas como feias e cheirando mal, e embora a letra tenha a pretensão de ser jocosa e se refira a uma determinada pessoa, não há como evitar que o
ouvinte da música associe tais características com a etnia negra em geral, provocando sentimento de humilhação nos seus integrantes, sobretudo mulheres, e fortalecendo nos demais o preconceito racial em desfavor de pessoas de raça negra e etnias correlatas, infelizmente ainda bastante arraigado na sociedade brasileira, há séculos, especialmente dada a circunstância de, na origem da vinda da população negra para o Brasil, e durante bastante tempo, isso haver ocorrido pela imposição do regime de escravidão a nativos capturados na África, conforme muito bem salientado pelo eminente Procurador de Justiça às fls. 961, preconceito esse que o Estado Brasileiro tem se esforçado para combater, através de normas constitucionais e legais, bem como através da adesão a tratados internacionais. Não é difícil imaginar o sentimento de uma mulher negra que, se encontrando em um lugar público, em meio a pessoas de outras etnias, ouvisse a execução da música “VEJA OS CABELOS DELA (p. 9)[5].
Quando o caso já estava em segunda instância, cerca de treze entidades da articulação negra de mulheres e o advogado Humberto Adami ingressaram como assistente processual da CRIOLA, participando do recurso especial e extraordinário a respeito do valor da condenação. Isso demonstrou que entidades de mulheres negras de todo o Brasil não concordavam com o argumento do voto dissidente e que apoiavam a interpretação da apelante[6]. Apesar da procedência da ação, não foi reconhecido integralmente o pedido pela condenação da empresa em R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais)[7]. A condenação, que ocorreu em 2004, foi em R$ 300.000,00, contudo, a sentença foi reformada e os cálculos reelaborados, e concluíram pela quantia de R$ 663.159,37[8].
O que o caso Sony Music x Mulheres Negras pode nos ensinar? Não costumamos aprender muito com a história, mesmo assim é importante sempre relembrar que ela é a ciência das ações dos homens no tempo, e isso inclui as instituições e seus agentes. Portanto, compreender como o sistema justiça brasileiro aborda historicamente questões relacionadas ao racismo que implica diretamente nos direitos mais fundamentais de seres humanos é muito relevante. E aqui a opção foi por retomar como o racismo se manifestou em um caso concreto e como o Judiciário por fim decidiu. A decisão no caso Sony demonstra o que aqueles que lutam contra o racismo na sociedade já afirmam desde sempre, que o conteúdo de ofensas a pessoas negras que mencionam, entre outras, a expressão “cabelo de bombril” é racista.
A argumentação a partir da intencionalidade e da liberdade de expressão não pode ser mobilizada para a não responsabilização por atos racistas, pois agride a dignidade da pessoa humana, podendo causar danos à personalidade individual e à coletiva. Além disso, cabe frisar que obviamente, a liberdade de expressão não é absoluta.
Em suma, é basilar que se compreenda o quanto é importante que em decisões acerca de casos de injúria racial ou de racismo seja explicitado o conceito de racismo, pois é preciso explicar a partir de estudos especializados. Diante disso, o caso Sony Music x Mulheres Negras se apresenta como um importante paradigma para esta reflexão na seara jurídica, acerca do modo como a questão do racismo tem sido abordada no sistema de justiça brasileiro e o que podemos de fato aprender com a história.
[1] Art. 140 do Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 31 mar. 2021.
[2] Disponível em: http://adami.adv.br/raciais/23_01.pdf. Acesso em: 31 mar. 2021.
[3] Lei n. 7.716, de 05 de janeiro de 1989 (Lei Caó). Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm. Acesso em: 31 mar. 2021.
[4] PROC. Nº 1997.001.031079-1 NA 33º VARA CÍVEL DA COMARCA DA CAPITAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
[5] Disponível em: http://adami.adv.br/raciais/23_01.pdf. Acesso em: 31 mar. 2021.
[6] Acervo digital do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental – IARA/RJ.
[7] Os recursos seriam destinados à criação de programas educacionais antirracistas a serem veiculados nas mídias de comunicação social e para produção de material impresso sobre cidadania destinado à distribuição nas escolas públicas e privadas das redes de ensino da Educação Básica em todo o Estado do Rio de Janeiro.
[8] Veja-se também: https://www.conjur.com.br/2011-mar-31/musica-tiririca-condenar-sony-music-milhao. Acesso em: 31 mar. 2021.