O sistema punitivista é seletivo (atingindo os mais vulneráveis) refletindo os interesses de classe no poder: Não discute as razões de uma realidade concreta numa situação concreta social e não individual.

Por Mercedes Lima no Migalhas

“…o direito, enquanto conjunto de normas, não é nada além de uma abstração sem vida“………………………………………………………………………

Na Alemanha antiga, o conceito acabado de norma externamente dada era muito estranho. Nenhum gênero de compilação de regras, estava, para os jurados leigos, ligado às leis, mas era um meio que os ajudava e fundamentar seu próprio juízo.” (Pachukanis, jurista russo)

No capitalismo o sistema penal é um dos mais poderosos instrumentos de manutenção e reprodução da dominação e da exclusão, características da formação social capitalista. Muitas vezes, numa cortina de fumaça, a palavra justiça é usada como se o sistema criminal representasse mesmo o real significado dessa palavra. Cada época histórica vai definir, caracterizar/tipificar, estabelecer formas de punição do indivíduo sempre associadas às relações de produção. O sistema penal atual revela ser uma manifestação de poder de classe do Estado capitalista dirigida prioritariamente aos excluídos, aos desprovidos de poder político. Afinal é falsa a ideia no sentido de que o estado de direito limitaria o arbítrio estatal. Historicamente, mesmo os Estados mais despóticos foram sempre baseadas no direito e na lei que são partes integrantes da ordem repressiva e da organização da violência legitimada exercida pelo Estado se seus aparelhos repressivos.

A punição de autores de condutas socialmente negativas, especialmente a prisional, gera na sociedade burguesa um sentimento de satisfação e mesmo de alívio já que identifica o inimigo, “o mau, o perigoso”, e, assim, desvia-se do caminho pela busca de soluções muito mais eficazes, estruturantes. E, tal por quê? Porque a punição pela punição não identifica as origens e razões dos comportamentos socialmente negativos, ou seja, não dá visibilidade às fontes geradoras da criminalidade de qualquer natureza e ainda encoberta os desvios que alimentam tais comportamentos.

Não havendo essa compreensão da questão ocorre então a adesão à ideologia da repressão, da lei e da ordem, um combate cego à criminalidade, aliás, muito alimentado pela mídia que, muitas vezes, trabalha com os sentimentos de insegurança e o medo coletivos e difusos na sociedade provocados por uma situação econômica e social discriminatórias, sem solidariedade, sem expectativas futuras, etc.

Esconde-se assim o verdadeiro vilão que é a situação de uma sociedade desigual, com exploração dos trabalhadores, com o racismo, homofobia, violência contra a mulher…O poder político moderno não se baseia apenas na violência física organizada (ainda a principal forma de repressão) monopolizada pelo Estado de forma legítima (porque fundamentada na lei) mas também na manipulação ideológica-simbólica na organização inclusive da organização do consentimento, na interiorização da repressão.

No punitivismo temos um Direito Penal que não trata o delito a partir de seu contexto histórico e político, mas como um problema meramente individual, o que, despolitiza o conflito e, conforme já dito, oculta as razões estruturais que o provoca ou o condiciona.

Assim, o conflito tem pouca probabilidade de ser resolvido pois a punição individual não pode solucionar questões sociais, e os fatores que o condicionou continuam a existir, e, nesse sentido, a pena contribui para a reprodução e o aumento da criminalidade. Exemplificando: alguém fruto de um lar onde imperou a violência pode ser violento. A prisão, por si só, não resolverá o conflito que ficou, lá atrás, quando o agredido quando criança apanhava e via sua mãe apanhar cotidianamente. O sistema penal no capitalismo é um reprodutor e, simultaneamente, produtor das relações opressivas que permeiam a realidade social.

E mais: o sistema é, convenientemente, para uma parte da sociedade, absolutamente seletivo: a juventude negra da periferia, os mais pobres, os LGBT, os desempregados.

Por um lado, nesse Estado e nessa situação é difícil a aplicação pura do sistema abolicionista, a saber, a não intervenção do sistema penal em questões sociais e, por outro lado, não se pode admitir a aplicação pura e simples, em maior ou menor grau de intensidade, do direito penal/processo penal nas referidas questões sociais.

É complexa a relação entre o sistema penal, enquanto um instrumento de dominação, e as opressões sofridas pelos mais pobres e explorados, pela discriminação em razão de classe, gênero, raça/enia e orientação sexual enfim, pelas profundas desigualdades econômicas e sociais. Sabemos que o simples punitivismo não resolve o conflito, pode-se, então, dizer a uma mulher brutalizada pela violência doméstica que o agressor não seja punido na área criminal? Não dá para ignorar, a existência de uma sólida base material: a) os setores mais vulneráveis, são concretamente os mais atingidos, nos processos de criminalização e vitimização: sofrem reais danos, diretos e indiretos. (ZAFFARONI, 2012, p. 327); b) Uma violência cometida hoje, pode ser repetida amanhã (bater novamente na mulher e até levá-la à morte); c) impossível ignorar a quantidade de mulheres que morrem diariamente no nosso país (Brasil).

Mas, na verdade, essa norma punitiva é uma imposição oriunda de uma ordem social que não é a sua, e sim do Estado burguês, um aparato de regulamentação social, externa e coercitiva portanto fora de seu controle. Políticas públicas voltadas para a educação, como forma de aprendizagem, de contenção de um comportamento social negativo é algo que não é histórico para a memória afetiva dos trabalhadores no cotidiano de seus dias, pelo contrário, tem a marca da repressão e violência de Estado e, portanto, distantes de outros tipos de procedimentos e processos na educação popular.

A mulher trabalhadora atingida pela violência, tem introjetada e incorporada como sua a ideia do justo, da pena de prisão como aquela referente à justiça, à ordem e à norma social que pode controlar. de seu mundo. Outros tipos de solução para comportamentos inadequados nem sempre são de fácil compreensão e apreensão pela classe trabalhadora.

 Assim, numa sociedade historicamente punitivista é difícil exigir que as mulheres vítimas de violência e mesmo o próprio Movimento Feminista, os negros, os LGBTs. abandonem espontaneamente a pauta criminalizadora. É difícil, reconhecemos, ter uma postura, digamos idealista, diante de um corpo e uma mente brutalmente espancados e humilhados. Nesse sentido, não é possível pura e simplesmente apontar um dedo acusador às mulheres quando essas lutaram pelo reconhecimento na lei da existência do feminicídio (lei 13.104/15), que alterou o Código Penal brasileiro, incluindo como qualificador do crime de homicídio o feminicídio. crime tipificado como tal quando se matam mulheres por serem mulheres) já que no país são assassinadas muitas mulheres (diariamente) por seus parceiros.

A criminalização tem efeitos simbólicos para os oprimidos e explorados (em geral com direitos e oportunidades negadas): é bom ser reconhecido como vítima pelo direito penal, é uma forma de visibilidade, enfim, punir dá a sensação de que foi feita justiça, o que, sabemos, é bastante questionável.

Muitos juristas brasileiros, por exemplo, dizem que razão assiste aos que dizem não ser possível um abolicionismo total e imediato, enquanto para outros não é possível defender um sistema punitivista como o brasileiro que não soluciona a questão da violência (BATISTA, Nilo)

O Movimento Feminista demonstrou na sua luta pela chamada Lei Maria da Penha, em um salto qualitativo para a ocasião, que às mulheres não interessava apenas a criminalização dos agressores, mas o concreto fim da violência sofrida e o reconhecimento de seus direitos através de outros mecanismos que não a punição penal,

Nesse sentido a Lei Maria da Penha tem artigos dispondo sobre formas educativas e de prevenção, a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero/classe e de raça e etnia, respeito à imagem da mulher na mídia, capacitação dos órgãos públicos, promoção de programas educacionais com valores éticos de respeito à dignidade da pessoa humana, formas de prevenção à violência à negligência, discriminação, exploração, violência, opressão, ou seja, apontando para outra soluções. Mas, quem se lembra dessas propostas de medidas? Quase ninguém: a memória pulsante é a ligada à prisão.

Verdade que o Movimento Feminista pediu as Delegacias de Polícia da Mulher, mas também exigiu a criação dos chamados Centros de Referência, as Casas da Mulher nos bairros mais periféricos, com um caráter mais educativo de encaminhamentos, orientação, construção coletiva das Redes de Proteção contra a violência, atividades educacionais e culturais voltadas principalmente na luta pela não violência contra as mulheres. Porém, com a forte cultura punitivista tais projetos foram abandonados, esvaziados os serviços pelos governos (sociais, educativos, psicológicos), enfim, restando apenas a ideia da punição prisional.

O que fazer? Partindo do princípio de que o senso comum é punitivista ou levado a assim ser, visando extinguir com a violência, dialogar com os Movimentos, nos espaços de organização coletiva, com metas de construção e implementação e avaliação coletivas de políticas públicas com prazos de cumprimento, estudar formas de conscientização, com estudos, discussões, reflexões, construção de alternativas (viáveis) para a solução de conflitos, num processo de conhecimento e convencimento, de crítica e autocrítica direcionados para a retirada da fumaça que permeia a questão. Porém impossíveis tais programas com um Estado que tem o monopólio legitimado da violência física Daí a necessidade de, intervindo na realidade social, envidar esforços na expectativa de superação do capitalismo e seu sistema penal, entendido como um mecanismo de manutenção e reprodução das desigualdades intrínsecas ao sistema capitalista, com propostas de aplicação de uma criminologia cautelar e preventiva (ZAFFARONI, 2012), levando-se em conta, evidentemente, os danos reais, diretos e indiretos causados pelos delitos às vítimas.

Aqui a atenção especial é com a questão do punitivismo no que se refere à violência contra a mulher, mas, a violência estrutural do capital nos obriga a ver a necessidade da transversalidade nas lutas dos explorados. O jurista Alessandro Baratta (BARATTA, 2011) faz uma distinção programática entre política penal e política criminal, a primeira referente à função punitiva do Estado (lei penal e sua aplicação), e a segunda entendida como política de transformação social e institucional, essa sim a estratégia correta e não o Direito Penal, um instrumento inadequado por não enfrentar as razões do conflito, as relações assimétricas de poder Um novo tipo de relação demanda a criação e a consolidação de uma nova base material, econômica.(PACHUKANIS, 2017), uma outra sociabilidade, uma outra sociedade, e, para nós particularmente, a sociedade socialista.

Mercedes Lima

Graduada em Direito pela USP. Mestre em Direitos Humanos Difusos e Coletivos Relativos à Imagem da Mulher na Mídia pela UNIMES. Professora universitária. Membro do Conselho da Condição Feminina do Estado de SP e ex-dirigente do SASP

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PACHUKANIS, Eviguiéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Ed. Boitempo. 1ª Edição. São Paulo. 2017- ISBN 8575595474

SUGAMOSTO, Vitor, et al. Esquerda punitiva e criminologia crítica: um diálogo possível?. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 134. ano 25. p. 411-435. São Paulo: Ed. RT, ago. 2017.

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Editora Revan – ISBN – 978-857106-4157 – Rio de Janeiro, 2011.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La cuestión criminal. Buenos Aires Editora Planeta, 2012.

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BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 201.