A recente decisão do STF no Tema de Repercussão Geral 709, a despeito de se debruçar sobre uma lide previdenciária, reescreve o regime jurídico da relação entre a aposentadoria especial e o contrato de trabalho. E isso, com a máxima urgência, merece a atenção da Justiça do Trabalho.
Até há pouco, não era incomum encontrar, na Justiça Federal Previdenciária, decisões que reconheciam o direito à continuidade do benefício de aposentadoria especial mesmo se o trabalhador se mantivesse ou voltasse à atividade insalubre ou perigosa. E, paralelamente, o que constitui uma grave incoerência, desde 2015 o TST entende o exato oposto: proíbe o trabalho nocivo ao beneficiário de aposentadoria especial e, como consequência, prescreve-lhe uma penalidade, consistente em atribuir à obtenção do referido benefício, por via administrativa ou judicial, o mesmo efeito de um pedido de demissão perante o empregador.
A aposentadoria especial, atualmente prevista no inciso II do § 1º do art. 201 da CF/88, tem por finalidade estabelecer a igualdade entre segurados da Previdência Social que tenham trabalhado em condições distintas; numa palavra: visa a tratar desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.
Para se exemplificar, seria injusto que o autor destas linhas, advogado e pesquisador, que sempre trabalhou manuseando livros, processos, “giz e lousa” (já raros) e o teclado do computador precisasse do mesmo número de anos para se aposentar que um operário fabril que se submeta a níveis de ruído ou calor excessivos, poeiras e fumos metálicos, produtos químicos nocivos à saúde, ou então, que se submeta diariamente ao risco de sofrer uma lesão corporal grave, contaminar-se biologicamente ou perder a vida, como é o caso dos médicos e enfermeiros. Para essas distintas realidades de trabalho o sistema previdenciário, com a inteligência que o constitui, estabelece critérios distintos para aquilatar a quantidade de trabalho em anos necessária à aposentadoria. Em nosso exemplo, o tempo de trabalho do advogado é considerado “comum” e o do trabalhador submetido a agentes ambientais nocivos ou perigosos é considerado “especial”.
Uma vez que o critério de discrímen é a exposição do segurado a condições de trabalho nocivas à saúde ou à integridade física, a aposentadoria especial se inscreve no rol de medidas destinadas à proteção desses bens. É com base nessa relação que a Seção de Dissídios Individuais I do TST resolveu o dissenso entre interpretações opostas do próprio Tribunal a respeito dos efeitos contratuais trabalhistas da aposentadoria especial, firmando o seguinte entendimento:
[…]
3. A Lei Previdenciária, por razões óbvias relacionadas à preservação da integridade do empregado, categoricamente veda a permanência no emprego após a concessão da aposentadoria especial, ao menos na função que ensejou a condição de risco à saúde, sob pena de automático cancelamento do benefício (arts. 46 e 57, § 8º, da lei 8.213/91).
4. Contraria a Orientação Jurisprudencial nº 361 da SbDI-1 do TST, por má aplicação, acórdão turmário que acolhe pedido de pagamento da multa de 40% sobre os depósitos do FGTS, relativamente a contrato de trabalho cuja resilição deu-se por iniciativa do empregado, por força da concessão de aposentadoria especial, reconhecida mediante decisão emanada da Justiça Federal, com efeitos retroativos, em face do contato, por longos anos, com agente nocivo – ruído intenso1.
A citada OJ 361, segundo a qual a aposentadoria espontânea não é causa de extinção do contrato de trabalho, remete-nos a uma longa história. Pois, antes dela, vigorou por muito tempo a súmula 295, que previa exatamente o seu contrário: a cessação do contrato de trabalho por aposentadoria espontânea do empregado, excluindo-lhe o direito à indenização rescisória. Para a superação desse entendimento bastante desfavorável ao trabalhador foi necessário que o STF interviesse, propiciando, por meio das decisões do Plenário nas ADIs 1.170 e 1.721, a modificação da jurisprudência trabalhista.
O mesmo filme parece se repetir em relação à citada decisão de 2015 da SDI do TST sobre os efeitos da aposentadoria especial no contrato de trabalho e ao decidido pelo STF no Tema 709. O item “i” da tese referenda a vedação de continuidade de recebimento da aposentadoria especial pelo trabalhador que retorna ou se mantém em atividade nociva. E o item “ii” estabelece o seguinte:
nas hipóteses em que o segurado solicitar a aposentadoria e continuar a exercer o labor especial, a data de início do benefício será a data de entrada do requerimento, remontando a esse marco, inclusive, os efeitos financeiros; efetivada, contudo, seja na via administrativa, seja na judicial, a implantação do benefício, uma vez verificada a continuidade ou o retorno ao labor nocivo, cessará o benefício previdenciário em questão2.
Vê-se claramente que a consequência da vedação constante da Lei de Benefícios (art. 57, § 8º, c./c. art. 46, lei 8.213/91) é a cessação da aposentadoria, não do vínculo de emprego. O certo, com o máximo respeito, é que o TST imputou ao texto da lei uma consequência nele não prevista. E, ao fazê-lo, feriu sua própria jurisprudência consolidada a respeito da relação entre aposentadoria espontânea e contrato de trabalho.
Pois, sendo espontânea a aposentadoria especial, isto é, por depender do requerimento, o argumento protetor à saúde do trabalhador contido na imputada “vedação ao trabalho nocivo” se desfaz ante a mera possibilidade dos trabalhadores completarem o tempo de trabalho necessário a tal benefício e simplesmente não o requererem. Em verdade, a decisão do TST estimula exatamente esse resultado ruim, pelo fato notório da discrepância entre o salário do trabalhador na ativa e a aposentadoria, ainda que especial, já que o benefício é calculado à base da média contributiva e limitado a um teto.
Mas não se coaduna com a Constituição a própria vedação ao trabalho, mesmo que nocivo, imposta ao titular do direito de aposentadoria especial. Um dos argumentos do TRT da 4ª Região, cujo acórdão era combatido no RE n. 761.961 (Tema 709), é o da inconstitucionalidade do § 8º do art. 57 da Lei n. 8.213/91 por ofensa à ampla liberdade de trabalho, prevista no art. 5º, XIII, CF/88 – “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. No Acórdão do Tema 709 o STF afastou referida inconstitucionalidade, pois entendeu que “mesmo em relação ao labor especial, não há propriamente proibição, mas sim a colocação de uma escolha ao obreiro, o qual, optando por persistir na atividade, terá seu benefício suspenso” e que “inexiste interdição total ao trabalho“, de sorte que não há, portanto, “inconstitucionalidade por violência ao art. 5º, inciso XIII, da Constituição da República”. Por fim, entendeu-se que o objetivo protetor segue presente na vedação à percepção do benefício “como fator de desestímulo ao retorno à atividade ou à continuidade nela“, já que “não haveria como o legislador estabelecer a vedação absoluta ao trabalho, inclusive o especial, por força do retromencionado art. 5º, inciso XIII, da Lei Fundamental“3. Fator de desestímulo é, sem embargo, muito diferente de proibição, o que faz da decisão do TST materialmente inconstitucional.
Concluímos essa breve notícia com a firme esperança de que haja prontamente a revisão do entendimento da SDI do TST. E não só pelas fragilidades da interpretação textual da norma previdenciária, como também pelos próprios princípios do Direito do Trabalho, como o da continuidade da relação de emprego, que impede que se impute ao trabalhador a vontade de rescindir o contrato quando pratica ato muito diverso e destinado a outra pessoa que não o empregador – o INSS.
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1- TST, E-ED-RR-87-86.2011.5.12.0041, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Rel. João Orestes Dalazen, DEJT 5/6/15, destacou-se.
2- STF, Plenário, Tema n. 709, RE n. 791.961, Rel. Dias Toffoli, DJ 19/8/20, destacou-se.
3- Ibidem, pp. 30-31, os destaques são nossos.
Atualizado em: 5/2/2021 08:32