Especialistas discordam sobre lei específica para direito de manifestação

por | out 11, 2016 | Jornal do Sindicato | 0 Comentários

Debatedores, no entanto, concordam sobre a necessidade de haver regras claras para o uso da força policial e que o direito de reunião e manifestação deve ser sempre protegido

São Paulo – Um grupo de acadêmicos de Direito, juízes, procuradores, promotores, defensores públicos, ONGs de direitos humanos, advogados e representantes da Polícia Militar de São Paulo se encontraram na última semana para discutir a possibilidade de elaboração de uma legislação específica para regulamentar o direito à manifestação no Brasil.

Av. Paulista-manisfestação

O debate, lançado por Leonardo Martins, professor de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e doutor em Direito público constitucional alemão pela Faculdade da Humboldt-Universität zu Berlin, ocorre no contexto da violenta repressão das policias brasileiras diante das manifestações de rua que ganharam força no país desde junho de 2013.

Criticada por especialistas e entidades de defesa dos direitos humanos, a ação da PM de São Paulo nos protestos que se tornaram frequentes na cidade foi, por exemplo, alvo de denúncia no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em setembro. No mesmo mês, em passagem pelo Brasil, o relator para a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), o uruguaio Edison Lanza, disse que a polícia brasileira age de modo diferente conforme a ideologia dos manifestantes.

É diante desse cenário que o professor Leonardo Martins acredita ser necessária uma regulamentação específica sobre o direito de manifestação no Brasil. Para ele, as distintas interpretações sobre tal direito, expresso na Constituição Federal no inciso XVI do artigo 5º, têm provocado confusão entre manifestantes e forças de segurança. “Seria muito bom para ambos os lados. É uma discussão que deve ser perseguida, será uma grande contribuição, inclusive para evitar que haja medo para o exercício de um direito tão importante, como o direito de manifestação”, explica Leonardo Martins.

Inspirado na regulamentação existente na Alemanha, o professor da UFRN argumenta que é preciso discutir os protocolos de atuação da polícia e amadurecer um projeto de lei que atenda ao anseio de todos os manifestantes, da direita e da esquerda, “excluindo os extremos, que não aceitam a ordem constitucional”.

Para Leonardo Martins, é fundamental que os protocolos de atuação policial sejam previstos e definidos numa legislação federal. “O primeiro passo é justamente consolidar o controle da polícia na legislação, para não ser algo discutido em cada um dos 27 estados. Controle de longo prazo, conforme a Constituição, respeitando o direito à manifestação.” Martins avalia que, atualmente, há desconfianças de ambos os lados, entre manifestantes e órgãos de segurança, em questões simples, como o aviso prévio da manifestação e a incerteza de quem deve ser avisado, quando e como, além da questão do trajeto, motivo de disputa em manifestações recentes em São Paulo. “Precisamos ultrapassar a trincheira entre a polícia e os movimentos sociais, com uma legislação clara, que preveja os mecanismos de controle. Esse é o papel da legislação, o de consolidar a democracia”, afirma.

Momento inoportuno
Para o procurador regional da República Marlon Weichert, a discussão do tema é positiva, do ponto de vista acadêmico. Mais do que isso, avalia, pode ser um erro diante do momento político pelo qual passa o país. “Há uma onda de limitação de direitos e, a meu ver, não é o momento adequado para uma legislação. No momento de certo clima de disputa irracional, seria uma tristeza colocar em pauta esse assunto”, afirma Marlon Weicher, conhecido por sua atuação em defesa da punição dos crimes cometidos por torturadores e agentes do Estado durante a ditadura civil-militar.

Além do que chama de “momento inadequado”, o procurador da República considera que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Marcha da Maconha, em 2011, aponta elementos importantes para o debate. “Invoco essa decisão para perguntar se há espaço para uma normativa federal. Vejo pouco espaço no parâmetro constitucional para uma regulamentação”, afirmou.

A menção se refere ao voto do ministro do STF Celso de Mello, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 187, que tratou sobre a Marcha da Maconha. Na ocasião, o voto do ministro ressaltou a liberdade de expressão e de reunião, bem como o direito à livre manifestação do pensamento, princípios fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988.

“É importante enfatizar…()…que a liberdade de reunião traduz meio vocacionado ao exercício do direito à livre expressão das ideias, configurando, por isso mesmo, um precioso instrumento de concretização da liberdade de manifestação do pensamento, nela incluído o insuprimível direito de protestar. Impõe-se, desse modo, ao Estado, em uma sociedade estruturada sob a égide de um regime democrático, o dever de respeitar a liberdade de reunião (de que são manifestações expressivas o comício, o desfile, a procissão e a passeata), que constitui prerrogativa essencial dos cidadãos, normalmente temida pelos regimes despóticos ou ditatoriais que não hesitam em golpeá-la, para asfixiar, desde logo, o direito de protesto, de crítica e de discordância daqueles que se opõem à prática autoritária do poder”, disse o ministro do STF em seu voto favorável à Marcha da Maconha.

Em outro trecho do voto, Celso de Melo diz: “A essencialidade dessa liberdade fundamental, que se exterioriza no direito de qualquer pessoa reunir-se com terceiros, pacificamente, sem armas, em locais públicos, independentemente de prévia autorização de órgãos ou agentes do Estado (que não se confunde com a determinação constitucional de “prévio aviso à autoridade competente”), revela-se tão significativa que os modelos político-jurídicos de democracia constitucional sequer admitem que o Poder Público interfira no exercício do direito de reunião. Isso significa que o Estado, para respeitar esse direito fundamental, não pode nem deve inibir o exercício da liberdade de reunião ou frustrar-lhe os objetivos ou inviabilizar, com medidas restritivas, a adoção de providências preparatórias e necessárias à sua realização ou omitir-se no dever de proteger os que a exercem contra aqueles que a ela se opõem ou, ainda, pretender impor controle oficial sobre o objeto da própria assembleia, passeata ou marcha. É por tal motivo que a liberdade de reunião encontra veemente repulsa por parte de sistemas autocráticos, que não conseguem tolerar a participação popular nos processos decisórios de governo nem admitir críticas, protestos ou reivindicações da sociedade civil”.

Convergências e divergências
Para a secretária especial de Direitos Humanos do governo federal, Flávia Piovesan, o encontro mostrou que há dois consensos no grupo que participou do debate. O primeiro, diz ela, é ser fundamental assegurar e proteger o direito à manifestação. “Não há democracia sem que esteja assegurada a liberdade de expressão, de manifestação, divergência, dissenso e pluralismo, inclusive sem cerceamento”, afirmou.

O segundo consenso trata da necessidade de se fomentar uma cultura democrática na polícia. De acordo com Flávia Piovesan, além do debate sobre o alcance do direito à liberdade de manifestação, “sempre pacífica e sem armas”, frisou, também é importante discutir o papel do Estado em intervir nesse direito. “Discutimos que a ação da polícia esteja em conformidade com as diretrizes da ONU, com base nos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, uso moderado da força, sem excesso, arbítrio e abuso. E havendo arbítrio e abuso, que haja a devida responsabilização e que os casos sejam investigados, processados e punidos”, afirmou.

A divergência se estabeleceu entre os participantes no que se refere à necessidade ou oportunidade de uma legislação específica. “Uns entendem que sim, outros de que seria melhor avançarmos em protocolos de atuação”, disse. Segundo a secretaria de Direitos Humanos do governo federal, a existência de algum marco jurídico é importante, mas talvez o caminho inicial seja um protocolo de atuação que permita parâmetros, considerando que o Brasil é formado por 27 unidades federativas e cada qual, a seu modo, lida com o tema, sobretudo com relação ao uso da força.

“Seria muito importante ter protocolos nacionais. Creio que a lei viria dessa maturação. São dois caminhos que se somam, primeiro os protocolos, com respostas mais do que laboratoriais, até que se tenha uma normatividade que venha assegurar e não cercear, e venha também impor controle a discricionariedade do uso da força”, pondera Flávia Piovesan.

Para ela, o exemplo da legislação alemã pode ajudar no debate, por cumprir requisitos como clareza, conceituar precisão, densidade, frisar a autonomia do direito a reunião, a autonomia do tema e local, a cooperação com o ente público e o papel das polícias para garantir a segurança e proteger o direto a reunião.

Início do debate
Na avaliação do coordenador de Justiça da ONG Conectas, Rafael Custódio, a necessidade de haver ou não uma lei específica para regulamentar o direito à manifestação, ainda é uma dúvida. Por outro lado, afirma ter certeza de que é preciso regulamentar o uso da força policial. “A falta de protocolo do uso da força traz seletividade e prejudica a responsabilização do comando da tropa que está no local”, explicou.

Rafael argumentou que as armas não letais, como spray de pimenta, balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, são regulamentadas no Brasil pelo Exército e não há no país uma padronização de seu uso. O coordenador da Conectas foi além e ponderou que nem sequer há informações sobre o impacto na saúde de quem é alvo de spray de pimenta e gás lacrimogêneo.  “É público e notório que desde 2013 a rua tornou-se o local de reivindicação. E também é público e notório que desde então a polícia tem reprimido com violência e abusos, inclusive refinando suas estratégias de repressão”, afirmou.

O representante da Conectas lembrou que não há notícia de qualquer investigação sobre os abusos cometidos pela polícia desde 2013. Nesse aspecto, ponderou sobre o modelo frágil de controle interno e externo da polícia, um sob responsabilidade da Corregedoria e outro da Justiça. “O poder judiciário hoje, em vez de reparar as violações, tem sido um legitimador das violações.” Rafael Custódio também questionou a necessidade de a manifestação ter um líder que avise a polícia ou órgão responsável, lembrando que, atualmente, alguns grupos não se organizam de forma hierárquica e muitos protestos são convocados pela internet.

Por todos esses aspectos contraditórios e polêmicos, o promotor do debate, Leonardo Martins, avalia que o encontro foi positivo, mas insuficiente. Com apoio da Fundação Konrad Adenauser, o grupo tentará se encontrar duas ou três vezes por ano para discutir se o Brasil precisa ou não de uma lei que regulamente o direito à manifestação, expresso na Constituição Federal, no inciso XVI do art. 5º, que assim o proclama: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

 

por Luciano Velleda / RBA

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