Mas afinal, o que é fascismo?

por | out 6, 2018 | Jornal do Sindicato | 0 Comentários

Por Claudia Maria Dadico

hitler facismoAs manifestações populares do dia 29 de setembro de 2018 – os denominados movimentos “#elenão” – uniram-se em torno de uma idéia central: a denúncia do fascismo. As palavras: “fascista” e “fascismo”,  utilizadas como mote de luta ecoaram em alto e bom som, nas maiores cidades do país. O movimento chamou a atenção por sua força popular e diversidade: mulheres, homens, transexuais, travestis, pessoas de todas as raças, gêneros, etnias, religiões e, também, de várias idades, ainda que o destaque tenha sido a predominância de pessoas jovens. Muitas mães levaram suas filhas e filhos, crianças e bebês. As imagens do movimento ganharam notoriedade no Brasil e no mundo e um dos comentários nas redes sociais que mais me chamou a atenção foi a pergunta formulada por um internauta: Mas, afinal, o que é fascismo?

De fato, pode parecer muito estranho falar em fascismo em pleno século XXI, mas para que não paire nenhuma dúvida acerca de seu real significado e do caráter suprapartidário da luta antifascista, este artigo se dispõe a explicar de forma clara e acessível o conceito adotado pela maioria dos estudiosos do tema, o perigo que ele representa para a democracia e porque a luta contra seu avanço é muito maior do que a defesa de programas ou bandeiras partidárias: ao contrário, deter sua marcha é pressuposto para que o debate democrático – seja por intermédio dos partidos, seja por intermédio da participação popular direta – possa se estabelecer e perseverar em sua existência.

Como explica Saccomani, o termo “fascismo” possui três usos ou significados principais: (1) no sentido mais estrito, está atrelado à experiência histórica da Itália de Mussolini; (2) o segundo uso se vincula à dimensão internacional do termo e sua expansão para outros países, dos quais a Alemanha nazista é exemplo eloqüente e bem conhecido; (3) o terceiro uso amplia e estende o termo a todos os movimentos ou regimes que compartilham de certas características nucleares do denominado “fascismo histórico”.

Este núcleo de características converge no sentido de identificar o fascismo a práticas autoritárias, fundadas em visões monolíticas da política, geralmente identificadas por um único partido de massa, hierarquicamente organizado, ideologicamente personificado na figura de um líder, no aniquilamento das oposições mediante o uso da violência e do terror; na exaltação de um ideal de nacionalismo (ex. “Make America Great Again” ou “Viena para os vienenses” etc); no uso de um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação e, por fim, na tentativa de instaurar um regime estatal orientado por uma lógica totalitária, que visa integrar as diversas estruturas sociais, políticas e culturais numa única estrutura de controle [1].

O cientista político Hélgio Trindade, em seu estudo sobre o integralismo da década de 30, afirma que para se determinar a natureza fascista de um determinado movimento é necessário articular-se os componentes típicos do fascismo europeu: a ideologia, a base social e a organização. A presença combinada desses elementos, ainda que com algumas variações, permite avaliar o caráter fascista de movimentos políticos fora do contexto europeu originário [2].

Os discursos e as peças de propaganda são as manifestações que mais facilmente permitem a compreensão da ideologia fascista em ação. Uma amostra particularmente elucidativa foi recolhida por Theodor Adorno na análise dos agitadores fascistas da década de 50, na Califórnia. Ataques a “inimigos”, exibições oratórias despidas de racionalidade produzidas por líderes histéricos que desconheciam inibições ao se exprimir ao fazer e dizer coisas que seus ouvintes não se atreveriam a fazer ou falar são alguns dos traços identificados por Adorno, na propaganda de conteúdo fascista [3].

A fala fascista não se fundamenta em propostas. Por incapacidade ou por escolha deliberada, não busca se estruturar em argumentos racionais. Antes, apela para a intimidação, para o ataque ao interlocutor, para a agressividade, para a incitação à violência, para a desqualificação da auto-estima e desprezo a todos e todas que não se incluam em seu modelo de “cidadão de bem”, de acordo com uma lógica binária e empobrecida, com a qual divide o mundo entre amigos e inimigos. O discurso do ódio é seu veículo. O medo é sua matéria-prima.

No que diz respeito à base social, estudiosos como Wilhem Reich [4] e Hannah Arendt [5] destacaram o protagonismo das classes médias nos movimentos fascistas e totalitários da Europa da década de 30, notadamente aquelas parcelas ressentidas em razão de perdas – reais ou percebidas –  geradas por crises econômicas.

A organização dos movimentos fascistas da década de 30, na Europa, caracterizou-se por estruturas fortemente hierarquizadas, com a finalidade enquadrar eficazmente seus militantes, seja através de regulamentos e relações rígidas entre seus diversos estratos, seja através da submissão voluntária e código de fidelidade, cujo rompimento foi duramente sancionado.

No caso da Alemanha nazista, esta estrutura organizacional fundada em rígida hierarquia, pavimentou o caminho para a multiplicação de milícias, cuja atuação acelerou o processo de desagregação da democracia e abriu o caminho para a instalação do Estado Totalitário e suas atrocidades [6].

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Esta brevíssima exposição dos principais traços característicos de um movimento ou regime fascista tem por finalidade avançar para o segundo ponto desse artigo: a ascensão do fascismo suprime a democracia. Não há democracia no fascismo. São coisas totalmente antagônicas e incompatíveis entre si.

Se a democracia exige a alternância no poder e a possibilidade de que a minoria de hoje se transforme na maioria de amanhã, o fascismo, como projeto monolítico de poder, fundado na idéia de controle social total, exclui toda e qualquer condição para o funcionamento da dinâmica democrática.

O Estado Democrático de Direito se transmuda em peça de ficção, quando o projeto de governo proposto pelo fascismo, que incorpora a violência e naturaliza a exclusão e eliminação de seus próprios cidadãos, converte o Estado de Exceção em ordem estabelecida.

Um projeto fascista de poder, alicerçado no uso exacerbado da violência contra determinadas parcelas da população, contraria o caráter universalista da dignidade humana, já que seleciona, de acordo com suas visões preconceituosas e discriminatórias, quais seres humanos são dignos de continuar em sua existência e quais devem ser eliminados. Não é à toa que Habermas afirma que no âmbito do discurso jurídico, o conceito de dignidade humana não pode exercer a função vaga de um mero “guardador de lugar” para uma concepção mal integrada de direitos humanos [7].

Em suas palavras:

“A dignidade humana é um sismógrafo que mostra o que é constitutivo para uma ordem jurídica democrática – a saber, precisamente os direitos que os cidadãos de uma comunidade política devem se dar para poderem se respeitar reciprocamente como membros de uma associação voluntária de livres e iguais. Somente a garantia desses direitos humanos cria o status de cidadãos que, como sujeitos de direitos iguais, pretendem ser respeitados em sua dignidade humana” [8].

Por fim, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso V, elege o pluralismo político como um dos fundamentos da República. O risco de supressão do pluralismo, típico dos avanços fascistas, não é uma questão lateral, acidental ou de mera preferência. Sua exclusão fere de morte o regime democrático, cuja supressão inviabiliza a concretização pela legítima via eleitoral de quaisquer projetos de governo, sejam eles ditos de direita ou de esquerda.

Gisele Citadino, com base nas lições de Rawls, destaca magistralmente que “o pluralismo razoável não é uma mera conjuntura histórica que pode vir a desaparecer; trata-se, na verdade, de marca duradoura, porque intrínseca, de qualquer regime democrático” [9].

A luta contra o avanço do fascismo não materializa mero posicionamento político-partidário e, portanto, vedado aos magistrados pela LOMAN. Denunciar o fascismo é dever de todos os democratas. Jacques Ranciére alerta que a democracia, diante dos avanços do poder econômico, está “entregue apenas à constância de seus atos” [10]. Vale dizer, sua defesa exige atitudes eficazes e não mera retórica.

Para os magistrados que juraram cumprir a Constituição e as leis do Brasil ao assumir seus cargos, a denúncia do fascismo não se traduz em infração funcional ao dever de se abster de emitir opiniões político-partidárias.

O óbvio precisa ser dito: não se pode permitir o cultivo do ódio a uma ordem constitucional fundada na dignidade humana como valor universal e no pluralismo político. Ao contrário, verdadeiras violações aos deveres que emergem do juramento de fidelidade à Constituição são o ativo engajamento em projetos totalitários de poder e/ou a omissão complacente diante do avanço do fascismo.

Se mais alemães, inclusive magistrados, houvessem denunciado e se posicionado de forma corajosa contra as atrocidades do partido nacional-socialista, a história poderia ter sido diferente, em uma época de fracasso coletivo da humanidade [11].

Claudia Maria Dadico é Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS, Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FADUSP e Juíza Federal.

*Justificando

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