Por que não deve haver sucumbência no processo do trabalho?

por | mar 14, 2018 | Jornal do Sindicato | 0 Comentários

Valdete-Souto-SeveroA Lei 13.467/17 (Reforma Trabalhista) alterou o sistema normativo no âmbito do Direito do Trabalho, promovendo precarização que atinge tanto as regras materiais, quanto as processuais.

Um dos dispositivos de maior polêmica trata da possibilidade de cobrança de honorários de sucumbência no processo do trabalho, a partir da inserção do art. 791-A no texto da CLT[1].

É certo que a Lei trata, talvez, de um dos documentos menos providos de cientificidade na recente história do direito brasileiro. Essa compreensão é suficiente para instruir e justificar sua inaplicabilidade.

O fato principal, porém, é que mesmo admitindo-se a legitimidade e a possibilidade de aplicação dessa legislação, não há como aplicar o art. 791-A da CLT, sem comprometer a noção de acesso à justiça que justifica a existência mesma de um Processo do Trabalho.

O Direito Processual do Trabalho se presta a regular procedimentos cuja origem se assenta no direito material do trabalho.

Só temos processo do trabalho e, no Brasil, inclusive uma estrutura própria para atuar no controle e efetividade dessa regulação estatal das relações de trabalho (Justiça do Trabalho), porque se trata de um um direito diferenciado que precisa ser tratado de modo diverso pelo Estado.

Historicamente, não faz sentido algum a criação de procedimento especial para lidar com os conflitos decorrentes da relação de trabalho, senão pelo reconhecimento de que há necessidade de uma lógica diversa daquela inspiradora do processo civil.

Há um inegável compromisso entre o processo civil e a manutenção da lógica do capital, basta pensarmos na regra do CPC que determina seja a execução processada do modo mais favorável para o devedor.

O processo do trabalho, por sua vez, assume compromisso com a efetividade, rompendo, ainda em 1932, com a ideia de separação entre conhecimento e execução, estabelecendo a execução de ofício desde a sentença de primeiro grau e prevendo regras procedimentais que privilegiam concentração, informalidade e oralidade dos atos.

E tudo isso porque reconhece a necessidade de tutela diferenciada para direitos que são peculiares. Reconhece, em última análise a autotutela que detém o empregador no curso da relação contratual e a a condição de hipossuficiência do empregado durante o vínculo de emprego.

A autotutela do empregador na vigência da relação de emprego decorre de características que são objetivas, independem de quais são as partes envolvidas. É o empregador quem “contrata” a força de trabalho, estipulando seu valor e todas as demais condições para a sua execução. É dele os meios de produção. Por fim, o tomador do trabalho (empregador) nessa relação jurídica (de trabalho) entrega dinheiro em troca de tempo de vida.

Portanto, é o empregado quem necessariamente “vai junto” com a mercadoria entregue nesta troca.

Torna-se, pois, objeto da relação jurídica de trabalho, porque não tem como entregar a força de trabalho sem estar junto dela, gastando seu tempo de vida e sua energia vital em favor de quem o emprega. É essa diferença objetiva que determina o fato de que o empregador, durante o vínculo, pode exercer seus direitos, sem necessitar da intervenção estatal. O empregado, por sua vez, não pode nem mesmo denunciar o “contrato”, senão com a intervenção do Estado.

Reconhecendo isso, o art. 2º da CLT atribui ao empregador “os riscos da atividade econômica”. Se insistirmos em tratar essa relação como um contrato, teremos de concluir que a decorrência lógica dessa opção legislativa é o reconhecimento de que o contrato de trabalho constitui documento de adesão em sua mais aguda expressão.

O Direito do Trabalho é justamente a regulação estatal que, em razão da histórica assimetria existente no âmbito das relações laborais, intervém na vontade individual para impor limites à autotutela e, portanto, ao acentuado desequilíbrio entre as partes desse “contrato”, revelados pela incontroversa lógica de exploração do trabalho.

Dentro da relação contratual, então, o empregado se apresenta – sempre e sem exceção – como mero aderente sem capacidade de debate, enfrentamento e discussão das cláusulas contratuais.

É, pois, importante para a interpretação do art. 791-A da CLT, que se compreenda o limite da relação contratual, pois ressalvadas as hipóteses previstas de forma abstrata pela legislação laboral quanto a alterações contratuais lesivas, e que sequer podem ser exercidas concretamente já que não reconhecemos até hoje o dever de motivação da despedida, emerge a absoluta autonomia que detém o empregador na condução da relação de emprego e, logo, na orientação, direção e determinação do resultado da exploração da força de trabalho.

Ora, se isso é realidade, não é possível olhar para o processo do trabalho com os olhos do processo comum, sob pena de torná-lo ineficaz e, portanto, sem utilidade prática.

O Processo Civil se pauta na regulação procedimental de demandas assentadas no direito civil, cuja gênese pressupõe a relação contratual entre iguais, admitidas as exceções que a própria legislação (civil) reconhece.

Por sua via, o Processo do Trabalho se presta a instrumentalizar as relações decorrentes do vínculo de emprego, logo, este instituto se assenta na regulação das regras, direitos e violações, rupturas e abusos praticados no âmbito do direito material do trabalho.

Exatamente aquele segmento em que a assimetria e o desequilíbrio se mostram imbricados com a própria relação contratual. Isso determina a necessidade de um olhar diferenciado para o Processo do Trabalho. Essa afirmação, que vale para a integralidade das regras processuais, tem ainda mais importância quando se trata da sucumbência.  

A possibilidade de fixação de honorários de sucumbência, a partir da introdução do art. 791-A na CLT, adota como referencial a perspectiva de que as partes, dentro do processo do trabalho, posicionam-se em condição de equilíbrio, o que evidentemente não se sustenta.

A figura dos honorários de sucumbência milita, exatamente, em campo de ordem do direito comum, em que as partes contratam de maneira livre – não obstante as reservas legais existentes pela própria legislação civil – e elementos como a subordinação jurídica e o dever de obediência, não assumem espaço dentro da relação social.

Ao contrário, o Processo do Trabalho só se justifica pela necessidade de conferir maior acesso à justiça, decorrência lógica do monopólio da jurisdição, que está positivado em pelo menos dois momentos, na parte dos direitos fundamentais da Constituição de 1988: no artigo 5º, XXXV, e no art. 7º, XXIX, quando trata especificamente dos direitos trabalhistas.

Na exposição de motivos do Decreto 1.237, em 02 de maio de 1939, que institui a Justiça do Trabalho, lê-se que a:

“repugnancia em reconhecer-se nos tribunaes do trabalho instituições judiciarias” decorria da “sobrevivencia deste velho pressuposto liberal – de que os conflictos do trabalho não interessam ao Estado”. Entretanto, a reação “contra a lentidão, a complexidade e o formalismo do processo commum” impunha, segundo os autores do projeto, a necessidade de criação de um processo do trabalho, ditado pela oralidade, pela concentração e pela simplicidade . Portanto, a aposta na Justiça do Trabalho como ambiente ideal para “harmonizar os interesses em lucta”, “em defesa da autoridade do Estado, que não pôde ser neutro, nem abstencionista, deante das perturbações collectivas, deixando as forças sociaes entregues aos proprios impulsos” é não apenas uma resposta às lutas da classe trabalhadora já organizada, como também efeito da necessidade de organização do próprio capital. E seu pressuposto é justamente a facilitação do acesso à justiça àqueles que não tem espaço para deduzir suas pretensões na chamada “justiça comum”.

Há um conflito entre capital e trabalho que, sabemos, é ditado pela dominação e pelo assujeitamento. O Estado reconhece o perigo disso.

Ao assumir a responsabilidade por harmonizar os interesses em luta, porém, não o faz reconhecendo para si uma função transformadora, que adote claramente o lugar de fala da classe trabalhadora e, com isso, consolide-se como um espaço de resistência. Ao contrário, declara que a intervenção se dá “em defesa da autoridade do Estado”.

Portanto, em defesa do capital, de quem o Estado é nada mais do que forma política. Ainda assim, reconhece a impossibilidade de uma justiça trabalhista “neutra diante das perturbações coletivas”.

Ou seja, reconhece a necessidade de, em alguma medida, assumir uma ideologia contrária aquela que justifica a própria existência do Direito e do Poder Judiciário, tornando-se um núcleo de proteção dos “dominados”.

A introdução da lógica da sucumbência no Processo do Trabalho rompe com esse princípio originário, desconfigura-o, tornando-o, pois, qualquer outra coisa que não um processo do trabalho.

Pois bem, a ideia de sucumbência dentro do processo liga-se à racionalidade liberal que monetiza o resultado de sucesso, previsto por sua vez como algo matemático, a ser obtido desde que o Juiz siga todos os preceitos estabelecidos no código.

Trata-se de premiar aquele que justificou a intervenção estatal para a solução de um litígio, com resultado positivo de sua tese (autor ou réu). Pauta-se, então, no princípio da causalidade.

Ocorre que Direito não é matemática e o resultado do processo não depende apenas da subsunção de fatos à previsões legislativas abstratas.

Além disso, quem aciona o Poder Judiciário, nesta lógica liberal que faz do monopólio da jurisdição um salvo conduto para o descumprimento das regras do jogo, o faz no mais das vezes porque não tem alternativa.

Quem não detém autotutela em uma sociedade desigual, precisa do Judiciário para fazer valer seus direitos.

E, acionando-o, não pode jamais ter a certeza do sucesso de sua pretensão, pois dependerá de fatores de ordem objetiva (possibilidade e capacidade de convencimento da prova que produzirá) e subjetiva (todo o arcabouço ideológico, ditado por pré-conceitos e vivências, que inconscientemente determina a interpretação judicial) que interferirão no resultado da causa.

Essa compreensão, por si só, coloca em xeque a ideia de sucumbência em qualquer âmbito do Poder Judiciário.

Pois bem, na Justiça do Trabalho soma-se ainda o fato de que o trabalhador, em razão da assimetria já referida, não possui os documentos que devem instrumentalizar o vínculo de emprego, nem tem condições concretas de produzir, muitas vezes, provas de suas alegações. Basta pensarmos nas inúmeras situações de assédio que podem ocorrer no ambiente de trabalho e cuja prova é extremamente difícil de ser produzida.

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No mais das vezes, a questão resolve-se pela oitiva de testemunhas e, pois, através do mais frágil de todos os meios probatórios. Mesmo em questões como jornada ou remuneração, em relação às quais há dever de produção prévia de documentação, pelo tomador do trabalho, precisamos reconhecer que existe uma dificuldade peculiar para o trabalhador em âmbito processual.

Tais documentos, que são produzidos e permanecem na posse do empregador, podem refletir a sua versão dos fatos, e não a realidade do que ocorreu durante o contrato. Desconstitui-los como demonstração da melhor versão dos fatos havidos durante o contrato nem sempre é uma tarefa possível.

A assimetria objetiva que existe entre as partes na relação material de trabalho determina, portanto, idêntica assimetria quanto as possibilidades concretas de convencimento em âmbito judicial.

 

E não é só isso

A Justiça do Trabalho é a via de acesso de trabalhadores que, na maioria absoluta dos casos, só procuram o Poder Judiciário quando já perderam sua fonte de subsistência.

Pessoas, portanto, que não tem garantia de fonte de subsistência, para as quais a cobrança da sucumbência ou mesmo a simples inserção de uma tal regra no texto da CLT, implicará razoável receio de ajuizamento de uma reclamatória trabalhista.

Esse efeito simbólico, que impedirá o ajuizamento de demandas pelo temor do risco da sucumbência é, ao mesmo tempo, estímulo ao descumprimento da ordem jurídico-trabalhista. O empregador, ciente dos riscos que farão com que seus empregados temam e, portanto, evitem, o recurso ao Poder Judiciário, terá tranquilidade para burlar a legislação trabalhista.

Trata-se de um efeito que já está sendo evidenciado pela narrativa de trabalhadores e trabalhadoras que desistem de discutir em juízo direitos dos quais creem titulares, pelo medo do custo do processo judicial.

Há ainda a circunstância de que uma ação trabalhista em que reconhecidos direitos ao trabalhador implica a reposição tardia e parcial de uma lesão a direito fundamental que sempre extrapola a esfera patrimonial.

Vale dizer: ao obter o reconhecimento judicial de uma pretensão, o trabalhador nada mais recebe do que a possibilidade de se ressarcir parcialmente de um prejuízo que já suportou. O ressarcimento será sempre parcial, exatamente porque a relação de trabalho envolve o tempo de vida de quem trabalha.

Desse modo, o pagamento das horas extras exigidas e não remuneradas durante o contrato, não implicará a devolução do tempo de vida perdido no ambiente de trabalho e, pois, subtraído do convívio familiar, das possibilidades de estudo, lazer, diversão ou mesmo ócio criativo. Permitir que o valor daí decorrente ainda seja utilizado para o pagamento dos honorários do advogado da empresa, em face da improcedência de outras pretensões, é, por via transversa, reduzir ainda mais a reparação do dano, estimulando, desse modo, a sua repetição.

Não podemos esquecer também que esse crédito, que apenas repõe parcialmente danos já sofridos, tem caráter alimentar por força do art. 100 da Constituição. Logo, mesmo sob a mais rasteira perspectiva positivista, não pode ser subtraído do patrimônio jurídico do trabalhador para o ressarcimento de honorários.

Além disso, os litígios trabalhistas contemplam quase sempre um cúmulo objetivo de ações processuais.

A causa de pedir de toda e qualquer ação trabalhista se assenta em violação à relação de trabalho que, por suas características e especificidades, bem como pela assimetria objetiva entre as partes desse vínculo, em regra é múltipla. Exatamente por isso, a demanda trabalhista se ramifica em vários pedidos.

Se algumas das pretensões apresentadas como violadas, indicadas como pedidos na reclamação trabalhista, não forem acolhidas, isso não significa que a provocação do Poder Judiciário se deu de modo indevido. Ao contrário, havendo parcial procedência dos pedidos formulados em uma ação trabalhista, o que o Estado está afirmando é que lesões a direitos fundamentais foram praticadas. Lesões que apenas através do Poder Judiciário podem ser reparadas.

A possibilidade de que o Poder Judiciário reconheça que o empregador praticou lesões a direitos fundamentais, mesmo podendo exercer autotutela no âmbito da relação processual, e ainda assim condene a parte autora ao pagamento de honorários de sucumbência em face dos pedidos não acolhidos é o mesmo que negar a prestação jurisdicional.

Um exemplo esclarece melhor o que estamos afirmando
Se um empregado formula três pedidos, que se desdobram em vários outros (pagamento das verbas resilitórias R$ 3.000,00, pagamento das horas extras com integrações R$ 1.000,00 e pagamento do adicional de insalubridade com integrações R$ 10.000,00) e consegue produzir prova convincente de dois deles, mas após a inspeção pericial obtém a conclusão de que seu ambiente de trabalho não é insalubre (conclusão a que apenas um perito técnico pode chegar, por força de comando legal expresso), ele – pela lógica do art. 791-A (alinhado ao art. 790-B) da CLT não terá os danos reconhecidos como havidos pelo Poder Judiciário Trabalhista reconhecidos.

Terá de pagar R$ 1.500,00 de honorários de sucumbência para o advogado da empresa, porque recorreu ao Poder Judiciário (única alternativa possível para a aferição das condições do ambiente de trabalho) e honorários de perito.

Se tais honorários forem fixados em R$ 2.500,00, nada sobrará da demanda para o trabalhador. O Estado terá reconhecido a lesão a direitos fundamentais diretamente relacionados à sua possibilidade de sobrevivência física e à qualidade de seu tempo de vida na terra, mas o resultado do processo será igual a zero.

A empresa, por sua vez, tendo lesado direitos fundamentais, terá ainda reduzida a despesa com os honorários do advogado que contratou para defendê-la, mesmo tendo violado a ordem jurídica.

Em outras situações concretas, o trabalhador poderia inclusive sair devendo do processo, mesmo tendo lesões contra o seu patrimônio jurídico reconhecidas pelo Estado.

Trata-se, portanto, de um absurdo incentivo ao contumaz desrespeito da ordem jurídica, o que sob a perspectiva sistêmica implica a ruptura do pacto social que justifica a criação de normas jurídicas e o monopólio estatal da jurisdição.

A única perspectiva que estimula a observância da ordem jurídica é a que reconhece o cúmulo objetivo de ações processuais, típico do Processo do Trabalho, como decorrência lógica do fato de que as lesões discutidas em juízo decorrem, todas elas, de um mesmo vínculo de trabalho.

Por consequência, o reconhecimento de que houve violação a qualquer direito originário do contrato de trabalho, importa em compreender que a parte autora não pode ser considerada sucumbente, porque provocou adequadamente o Poder Judiciário.

O efeito deletério que o descumprimento reiterado de direitos gera em um Estado que se pretende democrático (crescimento exponencial de demandas judiciais), pode ser enfrentado de dois modos.

De um lado, levando a sério o descumprimento e reconhecendo à demanda judicial a gravidade que deve ter, a fim de que aqueles que descumprem a legislação sejam punidos e, portanto, incentivados a não repetir esse ato de boicote ao projeto de sociedade que estamos tentando edificar desde 1988.

De outro, dificultando o acesso à justiça e, com isso, fazendo do descumprimento de direitos fundamentais um ótimo negócio. Esse é o caminho adotado pela “reforma”.

A Justiça do Trabalho vem resistindo bravamente a essa tentativa de desconfiguração da própria razão de haver um Poder Judiciário independente e expurgar o art. 791-A da CLT, reconhecendo sua incompatibilidade com o sistema jurídico constitucional trabalhista e, pois, com o Processo do Trabalho, é um passo fundamental dessa necessária resistência.

Nuredin Ahmad Allan é Advogado trabalhista e sindical, especialista em processo civil pela PUC/PR.

 

  • Valdete Souto Severo é Juíza do Trabalho na 4ª Região.

 

*Justificando

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