Brasil – Latifúndio e Expansão

por | maio 25, 2009 | Notas Rápidas | 0 Comentários

“Trata-se da morte dos cortadores de cana por exaustão no interior de São Paulo”, diz Leonilde Medeiros, referindo-se ao caso de 13 trabalhadores rurais da região de Ribeirão Preto (SP), que faleceram por paradas cardio-respiratórias. A suspeita é de que essa seja a contrapartida fatal para as mais altas taxas de produtividade sucroalcooleira do país.
A maioria desses trabalhadores ganha de acordo com a produção, enfrentando a concorrência das cortadoras mecânicas que invadiram os canaviais. Nas décadas de 70 e 80, um homem cortava em média de cinco a oito toneladas de cana por dia. Hoje a média está entre 12 e 15 toneladas.

Este é só um exemplo de como a violência não está restrita a partes “atrasadas” do país, mas também se reproduz no interior de sistemas freqüentemente apontados como modelos de eficiência e prosperidade. Como é o caso do agronegócio do açúcar e do álcool no estado de São Paulo, que ocupa o terceiro lugar na pauta de exportações do país.
Outras 177 denúncias de superexploração do trabalho e cerca de 270 ações de libertação de trabalhadores em condições análogas à de escravos foram registradas no campo brasileiro no ano passado pela CPT.
Recrutados para a derrubada da mata na abertura de novas fazendas, ou contratados para o preparo do solo, muitos trabalhadores são levados por “gatos” (contratadores de mão-de-obra) para regiões isoladas, distantes de seu local de origem. Em geral, ficam alojados em barracos de lona ou em locais em péssimas condições e são obrigados a comprar alimentos no armazém da própria fazenda, que cobra preços abusivos. Contraem dívidas e são coagidos, muitas vezes com o uso da força, a não deixarem o lugar.
Na mais recente “lista suja” divulgada pelo Ministério do Trabalho, são apontados 178 nomes de empregadores que utilizaram mão-de-obra escrava em fazendas de pecuária, soja, algodão, café, cana-de-açúcar, ou produção de carvão vegetal. Em sua maioria, essas propriedades são grandes áreas monocultoras que produzem para a exportação ou para a indústria nacional.

Terras indígenas
Nas regiões Norte e Centro-Oeste, a expansão de monoculturas voltadas à exportação – como eucalipto, soja e algodão – e as ações das madeireiras e carvoarias ameaçam também povos indígenas isolados ou de pouco contato. Um relatório elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) aponta casos de violência praticada contra 17 desses povos nos últimos três anos. Calcula-se que existam pelo menos 60 populações sem contato nessas regiões. “Estes crimes de genocídio têm sido praticados por grupos de extermínio a serviço de grileiros de terras públicas, madeireiros ou fazendeiros. A estratégia é acabar com qualquer vestígio de presença indígena para inviabilizar a demarcação de suas terras”, denuncia a entidade.
Entre as diversas formas de violência contra os índios, como racismo e agressões sexuais, o Cimi considera os conflitos pela demarcação de terras a principal delas. Entre 2003 e 2005, foram homologadas, em média, seis terras indígenas por ano, enquanto, no mesmo período, a média de assassinatos chegou a 40.
Um dos fatos registrados no ano passado foi o assassinato do cacique João Araújo Guajajara, de 70 anos. O autor do crime, identificado como Milton Careca, ameaçava os índios a deixarem a aldeia Bacurizinho, na cidade de Grajaú (MA). Segundo a entidade, há exploração irregular de soja, carvão e eucalipto na área e os índios recebem ameaças para que desistam de um processo que pede a revisão dos limites de sua terra. A homologação da reserva efetuada nos anos 80 deixou de fora cerca de 60 mil hectares de terras indígenas.

Passado de conflitos
“A violência no campo é uma constante na história brasileira”, resume a professora da UFRRJ, Leonilde Medeiros. “A formação das grandes propriedades rurais foi ‘empurrando’ para dentro do território primeiro os índíos, depois as populações tradicionais caboclas. E isso sempre foi feito com violência”.


A política de expansão das fronteiras agrícolas para o Norte do país, conduzida nos anos 70, também contribuiu para elevar a tensão no campo. Ela se fez ignorando a presença das populações indígenas com incentivos à migração de pequenos agricultores e grandes proprietários rurais, além de empresas do Centro-Sul atraídas por incentivos fiscais. A ocupação desse pedaço do território brasileiro envolveu grilagem de terras (falsificação dos títulos de posse da terra), formação de grandes latifúndios e o uso de recursos públicos para a construção de hidrelétricas e rodovias que beneficiariam as grandes propriedades. Mais tarde, pressionados por grileiros e latifundiários, os posseiros (lavradores que ocupam a terra sem ter o título de posse) seriam forçados a abrir “novas” fronteiras agrícolas, criando outros cenários de disputa pela terra.

“A partir dos anos 50, os conflitos são com os posseiros e também com arrendatários e parceiros, que são expulsos das propriedades, mas brigam pela posse da terra. É a parcela da população vitima da modernização do campo: filhos de pequenos agricultores sem

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acesso à terra, agricultores endividados. Essas pessoas vão se organizar formando os movimentos sociais do campo, cujas primeiras ocupações começam no final dos anos 70″, explica a professora.
A ação dos movimentos sociais contra propriedades improdutivas atinge principalmente porções de terras estocadas por especuladores à espera de valorização dos preços do hectare. Estima-se que hoje 62,4% da área do total dos imóveis rurais no Brasil sejam improdutivas. Além de seu valor no mercado, a terra é também um importante instrumento de poder político.
“Se não for resolvida a questão da propriedade da terra, os conflitos vão continuar; em minha opinião, cada vez mais violentos”, alerta o professor Ariovaldo de Oliveira, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP). Ele avalia que a grilagem de terras públicas é um dos principais elementos para manter a concentração de extensas propriedades rurais na mão de poucos donos. “O agronegócio tem interesse na grilagem de terras. Quando estudamos os conflitos no Pará, encontramos representantes da sojicultura do Mato Grosso, que estão lá porque querem obter mais terras públicas”. (Ver “Concentração de terra na mão de poucos custa caro ao Brasil”)
O Ministério do Desenvolvimento Agrário afirma que a política de regularização fundiária – que concede direito de uso e posse da terra – tem como prioridade as regiões onde a violência é mais intensa. “Estamos iniciando ações para acabar com a grilagem de terras: arrecadando terras públicas federais para fazer reforma agrária e regularizando a posse de porções de terra de até 500 hectares na Amazônia Legal. Vamos dar concessão direito real de uso para não estimular a especulação no mercado de terras. Queremos incentivar os posseiros a produzirem”, diz o secretário-executivo do ministério, Caio França.
Segundo ele, será feito também o cadastro dos imóveis rurais para identificar as áreas griladas. “Vamos começar pelas áreas do Pará, pela BR-163, e pelas áreas de interligação das Bacias de São Francisco porque sabemos que serão valorizadas”. Embora prevista desde 2003, a política de ordenamento fundiário só começou a dar os primeiros passos neste ano. Até então, segundo Caio França, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não tinha estrutura necessária para realizar o trabalho.
Entre as principais reivindicações dos movimentos rurais e de direitos humanos figuram, ao lado do combate à grilagem de terras, a atualização dos índices de produtividade das propriedades rurais – que determinam se uma propriedade alcança ou não o mínimo de sua capacidade produtiva e são utilizados para a desapropriação para fins de reforma agrária – e a aprovação da chamada PEC do trabalho escravo. A proposta de emenda constitucional (PEC) tramita no Congresso há 11 anos. Ela prevê uma nova redação à lei que trata do confisco de propriedades onde forem encontradas lavouras de plantas psicotrópicas ilegais, como a maconha. A exploração de mão-de-obra em regime análogo ao da escravidão seria incluída na tipificação de terras sujeitas à expropriação. A medida é considerada pelos movimentos sociais como uma das mais importantes iniciativas para auxiliar na erradicação do trabalho escravo no Brasil.
A principal bandeira das organizações, contudo, é a realização de uma ampla política de reforma agrária, que altere a estrutura fundiária do campo e atue como vetor de desenvolvimento para reduzir as profundas desigualdades sociais. Este será o tema da próxima reportagem do especial sobre concentração fundiária.

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