Por Henrique Bueno de Alvarenga Barbosa
O Direito do Consumidor não foge as influências do Direito Civil, em especial, no tocante ao cumprimento dos contratos, as hipóteses de caso fortuito e força maior eximem de responsabilidade civil a parte que não pôde adimplir ao contrato.
Contexto
A trágica ocorrência do covid-19 afetou profundamente as relações contratuais e para tanto foi necessário o advento de medidas jurídicas em especial o advento de medidas provisórias que possibilitassem a previsão de medidas emergenciais em face do novo Estado de Calamidade.
Diversas áreas do Direito foram consequentemente afetadas, vê-se, por exemplo, que a primeira medida provisória editada em razão da nova pandemia foi a MP 925 de 2020, que dispunha sobre medidas emergenciais no setor de aviação civil, sendo convertida na lei 14.034 de 24 de agosto de 2020.
De lá pra cá, diversas medidas provisórias foram editadas para conter os efeitos prejudiciais impostos pela iminente recessão econômica e pelo desastre sanitário. No âmbito do Direito Privado destaca-se a medida provisória 948 de 2020, que foi futuramente convertida na lei 14.046 de 24 de agosto de 2020.
A medida provisória 948 dispunha sobre o adiamento e cancelamento de eventos e reservas no setor de turismo e cultura, por emergência do Estado de Calamidade ocasionado pela pandemia do novo covid-19.
Enquadramento Jurídico
É notório e sabido que o Código Civil de 2002 trouxe unidade relativa no Direito Privado, isto é, juntou sob a mesma guarida vários institutos de Direito Privado quer sejam: teoria geral, obrigações, contratos, determinados assuntos de Direito Empresarial, Responsabilidade Civil, Direitos Reais, Família, e, Sucessões. Isto torna o Direito Civil o grande guarda-chuva teórico e prático de todo o Direito privado.
Do Direito Civil derivam-se os conceitos importantíssimos de: contratos, licitude dos atos, boa-fé, responsabilidade civil, indenizações e principalmente caso fortuito e força maior.
Como exposto, o Direito Civil é enorme referencial de conceitos para toda atuação no Direito Privado, e observa-se que o Direito do Consumidor não foge as influências do Direito Civil, em especial, no tocante ao cumprimento dos contratos, as hipóteses de caso fortuito e força maior eximem de responsabilidade civil a parte que não pôde adimplir ao contrato.
Caso fortuito ou de força maior são por definição fatos cujos efeitos não se podiam evitar ou impedir, assim dispõe o Direito Civil pátrio, exclui-se então a responsabilidade da parte inadimplente, já que são em si Acts of God, nos quais os seres humanos são impotentes em face de tais situações.
Veja então, que ao observar o texto da lei 14.046 de 24 de agosto de 2020, dispõe em seu artigo 5º, que cancelamentos ou adiamentos de contratos consumeristas caracterizam hipótese de caso fortuito e força maior, afastando a reparação por danos morais, aplicação de multas ou penalidades, ressalvados os casos de má-fé por parte do fornecedor.
Portanto, restando caracterizada a natureza jurídica da Covid-19 como caso fortuito ou força maior, fica afastado pleito de indenização por danos morais pelo consumidor, pois, afasta o nexo causal da parte inadimplente, no caso do diploma em estudo, o fornecedor que atua no setor hoteleiro, turístico ou cultural.
As hipóteses da lei 14.046 de 24 de agosto de 2020
Em que pese o Direito Civil e o Direito do Consumidor sejam áreas bastante semelhantes, verdadeiros ramos do Direito Privado, cabe pontuar certas distinções.
A função do Direito Consumerista é regular a relação entre o fornecedor e o consumidor, não se tratam de relações paritárias, mas relação especial no Direito Privado: o consumo; no qual o fornecedor detém vantagem técnica e econômica ante a outra parte, o consumidor.
Para tanto as reparações materiais no Direito do Consumidor são distintas, enquanto no Direito Civil a indenização é arbitrada pelo juiz livremente, obedecendo obviamente aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, no Direito Consumerista. A reparação ao consumidor deve ser adstrita as hipóteses de vício ou fato do produto ou serviço.
No Código do Consumidor em caso de vício do produto são dadas três alternativas para reparação: a substituição por outro produto de mesma espécie em perfeitas condições de uso; a restituição da quantia paga, corrigida e atualizada monetariamente; e, por fim, o abatimento proporcional do preço.
Na lei 14.046, que dispõe sobre o cancelamento ou remarcação de eventos culturais, turísticos, e hoteleiros, no disposto do artigo 2º, incisos I e II a reparação material ao consumidor é dispensada caso:
A. O fornecedor assegure a remarcação dos serviços, reservas e eventos dos quais não pôde adimplir sem taxa, multa ou custo adicional ao consumidor, ou,
B. Disponibilize crédito para que o consumidor utilize os serviços do fornecedor em forma de abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos.
Caso o consumidor tenha interesse em utilizar-se de uma dessas hipóteses deve então: notificar em até 120 (cento e vinte) dias contados da comunicação do adiamento ou cancelamento dos serviços, ou 30 (trinta) dias antes da futura realização do evento, aquele que ocorrer primeiro.
As hipóteses de remarcação dos serviços, ou, crédito para abatimento ainda trazem uma tolerância ainda maior em caso de internação ou motivo de força maior, o consumidor poderá remarcar ou pedir o crédito para abatimento dos serviços, eventos ou reservas contados a partir da data do fato impeditivo, quer seja a internação ou motivo de força maior.
A mesma prerrogativa se estende aos herdeiros e sucessores em caso de óbito do consumidor titular do Direito, sendo possível a remarcação dos serviços, ou, crédito para abatimento a partir da data da morte do consumidor titular.
O artigo 2º, § 7º, da lei 14.046 de 24 de agosto de 2020, ainda estabelece que as taxas de conveniência ou de entrega, advindas de intermediários ou serviços de agenciamento não serão reembolsadas ao consumidor.
Um profundo equívoco, pois prejudica o consumidor que opte pelo crédito em abatimento, provocando prejuízo, pois diminui o valor do crédito ao qual a lei conferiu Direito de crédito à parte, tendo em vista que o intermediário ou serviço de agenciamento não teve prejuízo algum.
Essas são duas formas de reparação que mais favorecem aos fornecedores, quer sejam os que atuam em setor de turismo ou que atuam em setor cultura, pois preservam a relação de consumo ainda que numa manutenção parcial da margem de lucro.
Observa-se que a lei foi bastante leniente com o fornecedor, justamente pelo caráter emergente da crise econômica, o referido diploma, portanto, tem incidência justamente para regular situação excepcional dentro do Direito Consumerista, a ocorrência da covid-19 e seus respectivos efeitos.
Cabe ressaltar que a lei 14.046 de 24 de agosto de 2020, estabelece um prazo prescricional que vai afetar a disponibilização do crédito para uso e abatimento em outros serviços, quer seja, o de 12 (doze) meses a partir do fim do estado de calamidade, estabelecido no decreto legislativo 6 de 20 de março de 2020.
Se por algum motivo não cessar a pandemia da covid-19, estabelece o artigo 2º, § 9º da lei 14.046 de 24 de agosto de 2020, que os eventos culturais e artísticos podem ser novamente adiados e os fornecedores têm a prerrogativa novamente de remarcar os serviços ou oferecer novos créditos.
A lei ainda contempla os artistas, palestrantes, e profissionais da cultura, contratados para eventos artísticos e culturais, conferindo a prerrogativa de não reembolsar imediatamente o valor dos cachês e prêmios já pagos, estabelecendo o prazo de 12 (doze) meses após o fim do Estado de Calamidade para remarcação e realização dos eventos. Somente após esse prazo, os artistas, palestrantes, e profissionais da cultura, devem restituir os valores pagos imediatamente corrigidos pelo Índice IPCA-E (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo).
A lei objeto do presente estudo consta ser um diploma legal de profundo apoio a sociedades empresarias do setor hoteleiro, turístico e cultural, nos quais se incluem também cinemas e teatros, por força do artigo 3º, inciso II da lei 14.046 de 24 de agosto de 2020.
A lei 14.046 de 24 de agosto de 2020 trouxe o crédito para abatimento proporcional ou a remarcação dos serviços, porém afastou a restituição integral, corrigida e atualizada dos valores contratados caso possa oferecer uma das hipóteses de reparação, sim, a lei 14.046 afastou a possibilidade indenizatória, caso o fornecedor cultural, hoteleiro ou turístico possa ainda que tardiamente prestar os serviços contratados.
Essa talvez seja a maior incongruência jurídica da referida lei, pois afronta toda a lógica do Direito Consumerista, a responsabilidade civil dos fornecedores no Direito do deve preservar a possibilidade de reparação total pelos danos causados, ainda que afastado o nexo causal, o consumidor adimplente pode não ter possibilidade ou interesse material em comparecer a evento cultural, turístico ou hoteleiro em prazo distinto da contratação original, pois a sociedade empresarial sempre assume o risco do negócio.
Para tanto reputa-se ilegal a disposição do artigo 2º, § 6º da lei 14.046 de 24 de agosto de 2020, pois não se pode impor a obrigação do consumidor aceitar remarcação do serviço ou crédito para abatimento proporcional, o Direito do Consumidor preserva a possibilidade de reparação material dos serviços contratados, nesse sentido prevalece a Código de Defesa do Consumidor de 1990.
Entretanto, a lei 14.046 de 24 de agosto de 2020 deixou vulneráveis a grande massa de consumidores de serviços de hotelaria, turismo, cultura e entretenimento, pois de forma antijurídica excluiu a restituição dos valores pagos corrigidos e atualizados como forma de reparação.
A lei se omitiu nesse ponto, restando ao hermeneuta, ao juiz ou árbitro e, aos demais operadores do Direito a forma de como satisfazer da melhor maneira o interesse do consumidor, a parte hipossuficiente.
A grande sorte do consumidor, é que como parte, existe imenso arcabouço doutrinário e jurisprudencial que o protege e lhe garante a restituição dos valores corrigidos e atualizados caso esse seja o seu pleito.
*Henrique Bueno de Alvarenga Barbosa é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado e colaborador do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo (SASP).