Artigo dos advogados e parceiros do SASP, Bruno César de Caires e Vitor Marques, no Migalhas.
A Câmara dos Deputados aprovou, recentemente, em primeiro turno, a mais nova reforma política do País. Dentre as mudanças, a mais significativa é a que restabelece a possibilidade de coligações entre partidos para a disputa de eleições proporcionais para o legislativo.
É perceptível que o modo de se fazer política no Brasil atualmente é baseado na confusão e no caos. Esta proposta de reforma política foi colocada em votação neste contexto, em meio ao não debate sobre voto impresso e o distritão. Muitos analistas políticos alertam que se trata da estratégia de colocar o famoso “bode na sala”, de modo que outras importantes decisões passem despercebidas enquanto a atenção é destinada exclusivamente ao esdrúxulo.
Estratégia ou não, o fato é que, por trás da cortina de fumaça, a Câmara dos Deputados retornou com as coligações partidárias para eleições proporcionais, o que desconfigura o sistema a ponto de perder sua principal característica, na medida que enfraquece os partidos, aumenta a fragmentação e perpetua a lógica do presidencialismo de coalizão.
O atual sistema de votação para representantes do poder legislativo, denominado sistema proporcional em lista aberta, permite ao eleitor realizar um voto partidário e nominal ao mesmo tempo. Neste ponto, cabe uma crítica ao modo como o voto é apresentado ao eleitor, que externa sua escolha digitando um só número de quatro caracteres para deputado federal, por exemplo. Isso retira do eleitor a clareza de, ao escolher um candidato, também estar votando, de antemão, no partido ao qual este pertence. Mais didático seria se o voto fosse computado em duas telas, sendo a primeira a escolha do partido no qual o eleitor iria votar e confirmar e em um segundo momento o voto nominal dentro da lista partidária.
Mas voltemos ao central, pois, apesar da sugestão, é certo que o grande problema do sistema eleitoral brasileiro não está nas urnas eletrônicas. O fato é que nunca tivemos uma eleição para o congresso nacional sem a possibilidade de coligação entre os partidos e estas são as grandes responsáveis por confundir, minar e desvirtuar os votos dos eleitores.
Tomemos a cultura do futebol como exemplo. É intuitivo que primeiro o torcedor deve escolher seu time de coração e após se apegar ao seu jogador favorito. O processo de decisão de voto para parlamentares deveria seguir a mesma lógica, a qual, primeiramente, você identifica o partido mais alinhado com seus interesses e, dentro deste universo, escolhe o candidato que melhor atende suas convicções. Contudo, a possibilidade de coligação entre as agremiações partidárias dinamita esta lógica, já que ao votar em um candidato de determinado partido, este voto é contabilizado para toda a coligação que pode incluir partidos de diversos espectros.
O exemplo mais clássico registrado no direito eleitoral foi o fenômeno protagonizado pelo deputado Tiririca nas eleições de 2010. O deputado, até então recordista de votos, obteve 1.353.820 votos pelo PR/SP. Há época, era comum ouvir que o artista “carregou” mais três deputados com seus votos. Os candidatos Protógenes Queiroz (PC do B-SP), Otoniel Lima (PRB-SP) e Vanderlei Siraque (PT-SP), foram eleitos com a sobra do quociente eleitoral dos votos totais obtidos pela coligação. Reparem no grau de disfuncionalidade que a coligação entre estes partidos causou: um artista de circo candidato pelo tradicionalista Partido Republicano, usando como mote de campanha um discurso antissistema, contribuiu para eleição de um delegado do Partido Comunista do Brasil e um candidato do governo à época. Resta evidente que quem votou em Tiririca como “protesto”, não tinha esta finalidade em mente e sequer imaginava ser possível este resultado.
A coligação entre partidos para disputa de eleições proporcionais permite que vários partidos dos mais diferentes matizes ideológicos concorram como se apenas um fossem, o que retira toda a lógica do sistema eleitoral proporcional. Isto porque, a própria contabilização dos votos e cadeiras é realizada levando em conta inicialmente a votação total do partido, e em uma segunda etapa a posição dos candidatos na lista de acordo com os votos recebidos nominalmente. Este é o motivo de alguns candidatos com mais votos não serem eleitos em detrimento de candidatos com menos votos nominais.
Por certo que neste ponto há um descompasso entre a teoria do sistema eleitoral e a cultura política brasileira. Tomamos a decisão de votar para legislativo em regra baseado em uma escolha personalista. Diante deste impasse, o congresso deveria tomar uma decisão política clara – ou joga às favas qualquer teoria política de sistema proporcional e adota de vez por todas um sistema majoritário que prioriza, sobretudo, quem já tem muito capital político acumulado ou adota efetivas medidas de fortalecimento dos partidos, fomentando uma cultura que traga clareza ao eleitor de que o voto está vinculado à determinado programa político.
Neste impasse, o retorno da possibilidade de coligação escancara um congresso acovardado quanto a adoção de um sistema majoritário e hesitante quanto ao sistema proporcional. Introduzir a possibilidade de coligação em verdade torna o sistema híbrido, retrocede aos tempos do “balaio de gatos”, no qual era possível votar em um artista circense republicano em forma de protesto e eleger um delegado comunista.
Em que se pese todas as mazelas que o sistema político brasileiro vivenciou nos últimos anos, a melhor reforma política possível neste momento é deixar tudo exatamente como está. O sistema proporcional de votação é um modelo adequado para o Brasil e merece ser defendido, já que dentre as possibilidades é o único que consegue garantir com alguma eficiência a participação de vozes minoritárias da sociedade. Vale lembrar que sua forma “pura” sem possibilidade de coligações nunca foi testada em uma eleição federal e sua mais severa crítica, baseada na carência de legitimidade entre eleitores e eleitos, tem estreita ligação com as coligações partidárias sem qualquer conformidade ideológica.
O fim das coligações aprovado em 2017 possibilitou que imaginássemos um sistema mais ajustado, com menos partidos e fragmentação. Isto possibilitaria um cenário em que, quando muito, haveria dez partidos, tornando mais nítida a identificação entre siglas e ideologias, possibilitando um uso mais racional do fundo partidário e, principalmente, minando as matrizes do chamado presidencialismo de coalizão. É evidente que este cenário imaginado com a aprovação do fim das coligações acabaria por enfraquecer o Centrão e sua infinitude de partidos pequenos e médios que sobrevivem desta formatação. Tal anomalia é tão significativa que faz o Brasil liderar com sobras o ranking mundial de número de partidos efetivos, tendo por volta de 16 partidos enquanto a média global fica entre 4 e 6 agremiações. [1]
Resta à sociedade civil rogar para que os interesses paroquiais não se sobreponham ao importante ajuste realizado em 2017 com o fim das coligações proporcionais. Nosso sistema político como um todo viveu sua maior crise na última década, e certamente não é revivendo práticas que podem ser apontadas como uma das causas desta corrosão que iremos conseguir respostas.
Bruno César de Caires é sócio do escritório Caires, Marques e Mazzaro Advogados, mestre em Direito Constitucional na Universidade de Lisboa e pós-graduando em Direito Eleitoral pela EJEP – TRE/SP
Vitor Marques, atualmente Secretário Municipal de Assuntos Jurídicos e da Justiça de Cotia/SP, mestre em Direito pela PUC-SP, Coordenador da Coordenadoria de Combate à Corrupção da OAB/SP
[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/fragmentacao-de-partidos-recorde-e-aberracao-mundial.shtml