O último relatório da Ouvidoria apresentou um forte apelo para a ampliação do policiamento e de mudanças no atendimento. Com relação às vítimas em decorrência da intervenção policial, o racismo estrutural é pauta urgente.
Por Elizeu Soares Lopes no Migalhas
Quando tomei posse na Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo em 10 de fevereiro de 2020, assumi um desafio. Um desafio em honrar o histórico de compromisso dos ouvidores que me antecederam, desde a criação da Ouvidoria da Polícia na década de 90. Superá-los é uma missão impossível, razão pela qual optei por construir minha gestão a partir do trabalho até agora desenvolvido, contribuindo no que permite minha trajetória e formação.
Além desse desafio pessoal a missão de um órgão como a Ouvidoria é por si complexa. As polícias no Brasil compõem-se como instituições seculares, institucionalizadas, que lidam com a proteção de direitos na sociedade. Atuar em seu controle e fiscalização traz a necessidade de uma visão ampla – desde o combate dos excessos à proteção dos próprios policiais.
Não bastasse esse contexto, o cenário da pandemia de coronavírus levou à necessidade de compreensão de um cenário institucional atípico (horários reduzidos, restrições) e de uma sociedade em reorganização.
As polícias não são alheias a estes processos sociais, com impactos sobe seu funcionamento, a saúde mental dos seus agentes e as mortes em decorrência direta do coronavírus.
A pandemia trouxe uma nova realidade para o sistema de segurança pública. Após dois anos consecutivos de decréscimo nas mortes por causas violentas, em 2020 houve um aumento nesta taxa. O aumento se deu em 130 mortes, ou 4,05%. A reflexão que deve ser feita é que mesmo com as condições de restrição de circulação das pessoas e de suspensão de realização de festa e eventos de grande porte, o aumento na violência letal permite pensar que a pandemia influenciou as relações sociais e ampliou o quadro pessoal de stress, depressão e ansiedade.
Associa-se a esse fator que leis e decretos, desde 2019, ampliaram o porte e uso de armas de fogo, assim como os recentes decretos nº 9845/2018, 9847/2019 e 10030/2019. A vinculação da realidade pandêmica ao uso e porte de armas trouxe uma realidade delicada e um momento de muitos desafios para se garantir cidades seguras com preservação da vida.
Apontamos no relatório da Ouvidoria da Polícia de São Paulo que de acordo com a natureza da denúncia, apresentou-se um forte apelo para a ampliação do policiamento, seguido de mudanças no atendimento das polícias, o que denota principalmente a necessidade de ações que propiciem melhoria nesse atendimento.
Mesmo com a solicitação de policiamento sendo um dos dados decorrentes em anos anteriores na Ouvidoria da Polícia, percebe-se um aumento percentual significativo nos últimos dois anos, que acreditamos estar relacionado à situação de pandemia vivida em sociedade.
Assim nos deparamos com alguns fatores como motivação para um maior número de solicitações de policiamento e de atendimento: o aumento da violência doméstica, promovido fundamentalmente pela agressão a mulheres, crianças e idosos e as perdas do sistema de segurança pública no Estado, com policiais que morreram em decorrência da covid-19.
Porém, o Estado de São Paulo teve queda das mortes em decorrência da intervenção policial comparada a 2019. Foram 780 em 2020 e 845 em 2019, uma redução de 7,7% (Monitor da Violência, 2021). O que chama a atenção é que grande parte dessas mortes se concentrou no primeiro semestre de 2020, quando se iniciou as medidas de restrição à circulação de pessoas.
Ressalta-se que em países da América Latina com padrões de violência letal e mortes em decorrência da ação policial parecidas com a do Brasil foram apontadas reduções das mortes no geral dadas as medidas sanitárias fomentadas pela pandemia (FBSP, 2021). Mesmo assim, relatório publicado pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC, 2020) comprovam que a América Latina, foi o mais violento do mundo com 37% do total dos homicídios mundiais.
No caso de São Paulo, as mortes em decorrência da ação policial derivam do confronto e da pronta resposta. A situação de estresse dos policiais também é fator de destaque no momento da ação. De qualquer forma, os números de morte em decorrência da ação policial no Estado ainda são muito altos.
No Sistema de dados da Ouvidoria há a opção de identificação pelo denunciante, portanto, não há obrigatoriedade para se registrar denúncias em que o denunciante diga sua raça/cor e sexo. Em 2020 quase a totalidade de denunciantes optou por não informar sua raça/cor, com exceção de 16 pessoas de um universo de 5163. Lembramos que é um dos objetivos da atual gestão da Ouvidoria fortalecer a importância desta categoria para os próximos anos, como medida de direcionamento das políticas de combate ao racismo estrutural e institucional.
Com relação às vítimas em decorrência da intervenção policial, os dados referentes a raça/cor e sexo podem ser analisados e refletidos, uma vez que o sistema da Ouvidoria considera o boletim de ocorrência e também o laudo necroscópico para considerar raça/cor e sexo das vítimas.
Muito intensos foram os debates em 2020 sobre as motivações raciais nas ações das polícias no Estado de São Paulo, como também o racismo estrutural presente na sociedade. As motivações se deram por parte do caso George Floyd, ocorrido em maio de 2020 nos Estados Unidos e que gerou uma série de protestos sociais contra a ação das polícias naquele país e que provocaram a busca de novos instrumentos de combate ao racismo no mundo todo.
Este caso repercutiu no Brasil e promoveu um debate acerca da ação de policiais direcionadas a jovens, negros e moradores de bairros afastados do centro histórico e comercial das cidades. Vários casos foram filmados e divulgados.
A pressão social por sistemas públicos de segurança que não sejam racistas coincide com os dados da Ouvidoria: foram 341 (48,3%) vítimas pardas, 237 (33%) brancas e 56 (7,9%) negras em decorrência da ação policial. Se somarmos pardos e negros, as vítimas são 397 pessoas, ou 56,2% do total em 2020.
A questão do racismo estrutural, portanto, é pauta urgente para a sociedade e para as polícias do Estado de São Paulo, e por isso o diálogo com esses setores para que as ações da polícia não tenham vítimas é fundamental.
Neste ponto, a Ouvidoria passou a ter um relacionamento institucional, construindo diálogos que se estendeu do Ministério da Justiça aos movimentos sociais passando pelos comandos das três policias estaduais. O foco foi a possibilidade de permitir que a Ouvidoria pudesse atuar como mediadora da sociedade perante os órgãos de segurança, e assim também contribuir na construção de políticas públicas que visem à melhoria do trabalho policial e um melhor atendimento à população.
Um exemplo desta atuação aconteceu em outubro de 2020, quando um grupo de empreendedores do turismo, durante uma caminhada pelo centro por um roteiro que apresenta a história negra da cidade, foi acompanhado de maneira ostensiva por policiais militares. O grupo denunciou o racismo dos policiais, por se tratar de um grupo majoritariamente de negros, mas não obteve nenhum resultado favorável. A Ouvidoria foi envolvida e mediamos um encontro dos empreendedores com o comando da PM. Disso saíram duas ações: uma palestra sobre a história negra de São Paulo para oficiais do curso de formação em direitos humanos da PM e uma caminhada, para esse mesmo grupo de oficiais, pelo centro histórico de São Paulo.
Esta aproximação culminou na criação de um grupo de trabalho, como parte das atribuições da ouvidoria de realização de estudos técnicos para propor aprimoramentos nas ações das polícias paulistas, formado por especialistas e por profissionais da própria ouvidoria, que tem como objetivo a produção de relatórios a serem encaminhados ao Secretário de Segurança Pública apresentando propostas concretas para combater o racismo. Este grupo de trabalho, inclusive, já realizou uma audiência pública com mais de cem entidades da sociedade, que puderam manifestar sua opinião e apresentar sugestões.
De março de 2020 até os dias atuais a estrutura, o atendimento e a dinâmica da Ouvidoria foram alterados. Por um lado, proteger a vida dos servidores e técnicos em trabalho e, por outro preservar a vida dos cidadãos que procuram a Ouvidoria foi uma preocupação constante.
Além disso, manter a maximização dos atendimentos, visando a continuidade da prestação adequada do serviço público, numa lógica multiportas: canal telefônico gratuito, site, e-mail e atendimentos da assessoria. Fazer com que o vírus não circulasse foi uma preocupação constante, mas não foi a única.
Questões políticas e sociais também pautaram as atividades da Ouvidoria, exemplo foram as manifestações pró-democracia que inquietaram São Paulo durante o primeiro semestre de 2020 e que retornaram neste segundo semestre de 2021, levando a Ouvidoria a criar espaços de interlocução e mediação entre os agentes do sistema de segurança e a sociedade.
Apesar dos desafios, as conquistas foram várias. A Ouvidoria passou a acompanhar no COPOM a atuação da polícia durante manifestações. Foi possível mediar ações de combate ao racismo dentro da polícia. Houve avanços na manutenção da sede da Ouvidoria (Rua Japurá, 42, Centro, São Paulo), com encaminhamentos para sua reforma e modernização digital. Ainda como destaque o arquivamento da lei complementar nº 31/2019 de extinção da Ouvidoria da Polícia de São Paulo. Outras tantas temáticas se fizeram, cujos desdobramentos se efetivaram e ainda se efetivarão.
O debate acerca da segurança pública em termos de pandemia foi interligado às necessidades da sociedade. Somado a isso, avançamos muito no debate sobre racismo relacional à intervenção policial e racismo presente nas corporações policiais, na importância da polícia comunitária, nas formas de abordagem e preservação da vida.
O isolamento social, as proibições de atividades coletivas, as restrições de horário para o funcionamento de bares e restaurantes, a proibição de festas e eventos não foi suficiente para frear a violência do Estado de São Paulo. Os dados apresentados comprovam que vivemos em uma estrutura social violenta que se reflete em diferentes áreas e de diferentes formas e, muitas vezes, se processa por dentro das polícias do Estado.
A Ouvidoria neste momento tem papel relevante dada a condição institucional de mediação entre sociedade e polícias. Construir novas práticas sociais e institucionais se fazem urgentes para que a violência seja superada em sua condição estrutural.
Dr. Elizeu Soares Lopes é Advogado criminalista, atual Ouvidor da Polícia de São Paulo, possui especialização em Direito Constitucional e Administrativo pela EPD e em gestão pública pela Unifesp.